Certa vez – era inverno, me lembro, mês de julho, fazia frio –, acordei no meio da noite com uma vertigem estranha. Na verdade fui acordado por ela. Um movimento brusco e involuntário do corpo que tropeça na culpa; uma sensação de quase queda e a entrada súbita no estado de alerta. Estendi a mão até o interruptor da luminária. Despertar repentinamente no meio do breu me deixa um pouco assustado. Girei o botão de um lado a outro, uma, duas, três vezes. Nada de luz. Puxei o fio com alguma força pra me certificar de que a tomada estava plugada. Merda! Esqueci de pagar a conta novamente! Pouco tempo depois, um bolo de ar ácido teimava em passear entre a boca do meu estômago e a minha garganta.
Rolei na cama por algumas horas procurando a melhor posição pra adormecer novamente; tanta coisa pra fazer logo mais, melhor não me render à vigília. Deita de bruços, aperta o travesseiro contra a barriga, tenta pensar em outra coisa, imagina um campo florido, crianças brincando, vai passar, vai passar... amanheceu. O foda é que acontece sempre. Cortarem a luz? Não, com isso já estou mais que habituado! Quando a vista acostuma, eu me viro relativamente bem no escuro. Pior é agüentar as dores de estômago, o ranço de amargura na boca e o leve enjôo que me perseguem até que a culpa se dissipe!
Em outubro passado esqueci o aniversário de uma amiga. Não se trata de qualquer pessoa, mas de alguém bastante próximo. Foi num fim-de-semana, fiquei a tarde inteira enterrado no sofá da sala, trocando compulsivamente o canal da televisão, com pouco ou nenhum interesse pelo que acontecia no vídeo. Só levantei pra jantar, tomei um banho longo, me deitei na cama pra ler e dormi. Três e meia da manhã: caralho, o aniversário da Flávia! Todo esse tempo ocioso, o telefone a menos de dois metros das minhas mãos e nem uma demonstração de afeto, uma palavrinha de consideração que fosse! Como fui relapso, isso é imperdoável! Então foram bem merecidas as crises de tontura e às cinco horas de enxaqueca que me atacaram enquanto eu rascunhava um pedido de desculpas e esperava um horário razoável pra ligar.
Mas os problemas mais graves começaram mesmo há cerca de duas semanas, no exato momento em que me dei conta que tinha perdido um livro da Biblioteca Municipal. Eu já era mal visto na instituição por conta de gafes anteriores (crises de tosse inoportunas, um rabisco distraído no ensaio sobre a música brasileira do Mário, o desrespeito à pressa sagrada das sextas-feiras que faz com que os funcionários me olhem feio, quando, às quinze pras cinco da tarde, peço um exemplar que está no último armazém). Pois foi justamente um destes livros que eu deixei escorregar no ônibus a caminho de casa. (Na ocasião eu andava afetado pela sonolência, que adquiri ao receber uma carta ressentida. Um amigo que mora no exterior me cobrava com dureza as respostas que eu nunca escrevi). Sentei num daqueles bancos mais altos da condução (encostado na janela e atrás do motorista, é uma mania de infância), abri o livro no colo e então só me lembro de ler a frase las costumbres, Andrée, son formas concretas del ritmo, son la cuota de ritmo que nos ayuda a vivir... Quando dei por mim estava na calçada, há duas quadras do meu prédio, já sem o livro nas mãos e sentindo uma náusea incontrolável.
Entrei na portaria suando frio. Corri até o elevador e o desgraçado tinha acabado de subir! Resolvi usar as escadas, três andares, seis lances, onde estão as chaves, bolsos da frente?, bolsos de trás?! Direto pro banheiro, cabeça no vaso sanitário, espasmos, contrações, e enfim vomito minha aflição na forma de um ninho de cabelo grosso e escuro. Confesso que fiquei impressionado! A matéria mais estranha que eu já tinha regurgitado era pedaços de uma bílis amarronzada. Normal. Acontece quando carrego na dose. Até podemos ver isso como uma espécie de expurgo, uma depuração quase saudável, afinal, é sabido que o fígado tem grande capacidade regenerativa. Mas longos fios de cabelos negros emaranhados num novelo foram mais que um expurgo, talvez um exorcismo!
Nunca gostei de vomitar. Parece uma idéia consensual, mas não é. Tem gente que gosta. Conheço quem enfie o dedo na goela pelos mais diversos motivos: pra continuar comendo, pra emagrecer ou pra se livrar da ressaca. Eu infelizmente não tenho essa facilidade. Primeiro fico apavorado, depois sufocado, e por fim, deprimido. Imagine o quanto foi difícil passar várias vezes pela experiência de expelir uma secreção tão bizarra! Isso porque o refluxo voltava sempre que eu pensava no infeliz incidente e só me recuperei na segunda-feira à tarde, depois que pedi que um amigo de fala articulada ligasse pra biblioteca e se justificasse por mim.
A funcionária da administração nem se abalou. Segundo a interpretação do meu amigo, ela já devia ter a sentença decorada. Você deve preencher um formulário de extravio, assinar um termo de compromisso, pagar a taxa de reposição. Seus direitos de uso dos serviços da biblioteca ficarão suspensos pelo prazo de um mês. Acontece que eu não fui o primeiro nem o último a cometer esse tipo de deslize. Mesmo assim fiquei com a sensação de que aquela baixinha mal humorada já estava esperando pelo meu lapso. Vindo de mim, tal vício parece mais que previsível.
Hoje posso me dizer aliviado. Voltei à rotina tranqüila das taquicardias, breves paralisias, falta de ar e pequenos tremores que me tomam sempre que perco as chaves, deixo de cumprir um prazo, cometo erros ortográficos nas cartas ou me atraso pra sessão de cinema. Normal. Acontece quando me descuido.
**Texto da Anna.
sábado, 20 de outubro de 2007
domingo, 14 de outubro de 2007
Vidro no ventilador
I
São quase duas da manhã, procura uma cabeça rosa por entre as pretas. Não sobrou nenhum fósforo para riscar. Segue com o cigarro dependurado no canto da boca protelando a primeira tragada de tanta preguiça para procurar um isqueiro, outra caixa de fósforos e desandou este texto.
Existe alguma coisa estranha no ar, talvez a falta de comunicação ou a comunicação castrada que nós temos, incompleta. Me pergunto: que comunicação é completa? Clausura do pensamento na palavra.
E quando sexo já não basta tanto? E quando queria conversar sobre as coisas da vida numa profundidade em que você se afogaria? E que me irrita você não crescer apesar de te gostar assim tão menino.
Ela tinha que pintar a cabeça de vermelho: corrigir as provas. Dormiu o dia inteiro. E de repente essa mania de se afastar das pessoas das quais sente saudade.
Odeio segundas-feiras. Está tudo com gosto de cinza. Está tudo "demorando em ser tão ruim".
Preciso corrigir as provas, estudar, pintar os cabelos, fazer as unhas, ler quem eu gosto e beber chopp preto. E a vida é isso aí? Coca-cola é isso aí.
Ontem você águou duas vezes, assim como quem tem fome. Te deixei salivando até que me abocanhasse. Te amo, ele me disse. Te amo.
Disse que eu discuto colocando o dedo na cara. E que essa mania, eu peguei de um tal fulano que eu namorei. Ele disse: você é orgulhosinha.
E você é egoísta. Eu disse. Ele está pesado e eu ficando velha.
Rio, 30 de Setembro de 2007.
São quase duas da manhã, procura uma cabeça rosa por entre as pretas. Não sobrou nenhum fósforo para riscar. Segue com o cigarro dependurado no canto da boca protelando a primeira tragada de tanta preguiça para procurar um isqueiro, outra caixa de fósforos e desandou este texto.
Existe alguma coisa estranha no ar, talvez a falta de comunicação ou a comunicação castrada que nós temos, incompleta. Me pergunto: que comunicação é completa? Clausura do pensamento na palavra.
E quando sexo já não basta tanto? E quando queria conversar sobre as coisas da vida numa profundidade em que você se afogaria? E que me irrita você não crescer apesar de te gostar assim tão menino.
Ela tinha que pintar a cabeça de vermelho: corrigir as provas. Dormiu o dia inteiro. E de repente essa mania de se afastar das pessoas das quais sente saudade.
Odeio segundas-feiras. Está tudo com gosto de cinza. Está tudo "demorando em ser tão ruim".
Preciso corrigir as provas, estudar, pintar os cabelos, fazer as unhas, ler quem eu gosto e beber chopp preto. E a vida é isso aí? Coca-cola é isso aí.
Ontem você águou duas vezes, assim como quem tem fome. Te deixei salivando até que me abocanhasse. Te amo, ele me disse. Te amo.
Disse que eu discuto colocando o dedo na cara. E que essa mania, eu peguei de um tal fulano que eu namorei. Ele disse: você é orgulhosinha.
E você é egoísta. Eu disse. Ele está pesado e eu ficando velha.
Rio, 30 de Setembro de 2007.
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