sábado, 20 de outubro de 2007

Engov

Certa vez – era inverno, me lembro, mês de julho, fazia frio –, acordei no meio da noite com uma vertigem estranha. Na verdade fui acordado por ela. Um movimento brusco e involuntário do corpo que tropeça na culpa; uma sensação de quase queda e a entrada súbita no estado de alerta. Estendi a mão até o interruptor da luminária. Despertar repentinamente no meio do breu me deixa um pouco assustado. Girei o botão de um lado a outro, uma, duas, três vezes. Nada de luz. Puxei o fio com alguma força pra me certificar de que a tomada estava plugada. Merda! Esqueci de pagar a conta novamente! Pouco tempo depois, um bolo de ar ácido teimava em passear entre a boca do meu estômago e a minha garganta.
Rolei na cama por algumas horas procurando a melhor posição pra adormecer novamente; tanta coisa pra fazer logo mais, melhor não me render à vigília. Deita de bruços, aperta o travesseiro contra a barriga, tenta pensar em outra coisa, imagina um campo florido, crianças brincando, vai passar, vai passar... amanheceu. O foda é que acontece sempre. Cortarem a luz? Não, com isso já estou mais que habituado! Quando a vista acostuma, eu me viro relativamente bem no escuro. Pior é agüentar as dores de estômago, o ranço de amargura na boca e o leve enjôo que me perseguem até que a culpa se dissipe!
Em outubro passado esqueci o aniversário de uma amiga. Não se trata de qualquer pessoa, mas de alguém bastante próximo. Foi num fim-de-semana, fiquei a tarde inteira enterrado no sofá da sala, trocando compulsivamente o canal da televisão, com pouco ou nenhum interesse pelo que acontecia no vídeo. Só levantei pra jantar, tomei um banho longo, me deitei na cama pra ler e dormi. Três e meia da manhã: caralho, o aniversário da Flávia! Todo esse tempo ocioso, o telefone a menos de dois metros das minhas mãos e nem uma demonstração de afeto, uma palavrinha de consideração que fosse! Como fui relapso, isso é imperdoável! Então foram bem merecidas as crises de tontura e às cinco horas de enxaqueca que me atacaram enquanto eu rascunhava um pedido de desculpas e esperava um horário razoável pra ligar.
Mas os problemas mais graves começaram mesmo há cerca de duas semanas, no exato momento em que me dei conta que tinha perdido um livro da Biblioteca Municipal. Eu já era mal visto na instituição por conta de gafes anteriores (crises de tosse inoportunas, um rabisco distraído no ensaio sobre a música brasileira do Mário, o desrespeito à pressa sagrada das sextas-feiras que faz com que os funcionários me olhem feio, quando, às quinze pras cinco da tarde, peço um exemplar que está no último armazém). Pois foi justamente um destes livros que eu deixei escorregar no ônibus a caminho de casa. (Na ocasião eu andava afetado pela sonolência, que adquiri ao receber uma carta ressentida. Um amigo que mora no exterior me cobrava com dureza as respostas que eu nunca escrevi). Sentei num daqueles bancos mais altos da condução (encostado na janela e atrás do motorista, é uma mania de infância), abri o livro no colo e então só me lembro de ler a frase las costumbres, Andrée, son formas concretas del ritmo, son la cuota de ritmo que nos ayuda a vivir... Quando dei por mim estava na calçada, há duas quadras do meu prédio, já sem o livro nas mãos e sentindo uma náusea incontrolável.
Entrei na portaria suando frio. Corri até o elevador e o desgraçado tinha acabado de subir! Resolvi usar as escadas, três andares, seis lances, onde estão as chaves, bolsos da frente?, bolsos de trás?! Direto pro banheiro, cabeça no vaso sanitário, espasmos, contrações, e enfim vomito minha aflição na forma de um ninho de cabelo grosso e escuro. Confesso que fiquei impressionado! A matéria mais estranha que eu já tinha regurgitado era pedaços de uma bílis amarronzada. Normal. Acontece quando carrego na dose. Até podemos ver isso como uma espécie de expurgo, uma depuração quase saudável, afinal, é sabido que o fígado tem grande capacidade regenerativa. Mas longos fios de cabelos negros emaranhados num novelo foram mais que um expurgo, talvez um exorcismo!
Nunca gostei de vomitar. Parece uma idéia consensual, mas não é. Tem gente que gosta. Conheço quem enfie o dedo na goela pelos mais diversos motivos: pra continuar comendo, pra emagrecer ou pra se livrar da ressaca. Eu infelizmente não tenho essa facilidade. Primeiro fico apavorado, depois sufocado, e por fim, deprimido. Imagine o quanto foi difícil passar várias vezes pela experiência de expelir uma secreção tão bizarra! Isso porque o refluxo voltava sempre que eu pensava no infeliz incidente e só me recuperei na segunda-feira à tarde, depois que pedi que um amigo de fala articulada ligasse pra biblioteca e se justificasse por mim.
A funcionária da administração nem se abalou. Segundo a interpretação do meu amigo, ela já devia ter a sentença decorada. Você deve preencher um formulário de extravio, assinar um termo de compromisso, pagar a taxa de reposição. Seus direitos de uso dos serviços da biblioteca ficarão suspensos pelo prazo de um mês. Acontece que eu não fui o primeiro nem o último a cometer esse tipo de deslize. Mesmo assim fiquei com a sensação de que aquela baixinha mal humorada já estava esperando pelo meu lapso. Vindo de mim, tal vício parece mais que previsível.
Hoje posso me dizer aliviado. Voltei à rotina tranqüila das taquicardias, breves paralisias, falta de ar e pequenos tremores que me tomam sempre que perco as chaves, deixo de cumprir um prazo, cometo erros ortográficos nas cartas ou me atraso pra sessão de cinema. Normal. Acontece quando me descuido.

**Texto da Anna.

27 comentários:

O Nome da Rosa disse...

"Direto pro banheiro, cabeça no vaso sanitário, espasmos, contrações, e enfim vomito minha aflição na forma de um ninho de cabelo grosso e escuro."

Gostei das imagens do seu narrador para descrever o ato de vomitar. Sério mesmo, gostei demais.

meca disse...

Tá ficando cada dia mais foda, hein?!
'meu garoto' (já que vc insiste em ser 'homem' nas letras)!!!
MUITO BOM!!

Anônimo disse...

eu já meti o dedo na goela, já fiz isso sim.

Anônimo disse...

pois é, eu nunca tive coragem de enfiar o dedo na goela, tenho medo de vomitar! mas acredito que faça bem.

então, vamos ver o filme do pauls (do babenco, na verdade)? pra mim fica melhor de quinta a domingo. sei que fim de semana é mais caro, só que são esses os dias em que eu não trabalho. dou aulas de segunda à quarta, à noite, de seis às dez, e não quero sair correndo do cinema, sem tomar um trago e trocar uma idéia. é sabido que eu gosto muito de falar! mas se não for consenso tudo bem, a gente conversa sobre o filme depois.

O Nome da Rosa disse...

Pra mim só existe condição na semana que vem e na quinta. Segunda eu trabalho o dia inteiro em SJ Meriti.

Mas vamos ver o gael garcia bernal. Eu vou ficar em desvantagem pq Thiago e vc já leram o livro. Mas beleza. rs

Anônimo disse...

eu verei segunda de tarde. no iguatemi vai tá 3 reais a meia =]

e né!

mas sexta é aniv do hugo, que deve rolar em algum canto da lapa. podemos então trocar a idéia.

até lá =]

Anônimo disse...

bom, então já é, até lá.

Anônimo disse...

"El tango es hijo directo de ese intenso mestizaje. Se sabe que los primeros tangueros eran afroargentinos y afrouruguayos[4] ; que el bandoneón proviene de Alemania; que su sensualidad deriva de su origen prostibulario, donde los inmigrantes europeos que llegaban solos a buscar empleo mantenían relaciones sexuales con las nativas, mayoritariamente afroargentinas e indoamericanas denominadas «chinas». Se sabe también que el argot del tango, el lunfardo, está plagado de expresiones italianas y africanas; que su ritmo y clima nostálgico está emparentado con la habanera cubana; y que «tango, milonga, malambo y candombe», son parte de una misma familia musical de raices africanas y costumbres proveniente de los gauchos que migraron a la ciudad."

Anônimo disse...

"A identificação do gênio musical negro constitui uma importante narrativa cultural. Ela conta e reconta não tanto a história da vitória dos fracos sobre os fortes, mas dos poderes relativos desfrutados por diferentes tipos de força."

(Paul Gilroy)

Anônimo disse...

vi hoje "o passado". deixarei os comentários pra sexta, na lapa.

mas como a mão coça, farei um: é esquisito ser uma das únicas duas pessoas no cinema que tinha lido o livro (se é que as pessoas no cinema sabiam que o filme se baseava numa obra literária - alguém repara no início do filme se informa, eu não reparei, mas acho que não disse nada).

até sexta!

Anônimo disse...

veja, florzinha, coloquei mais fotos no álbum, mas ainda não terminei. pegue lá e cumpra a função de censor. tenho que dizer que gostei demais da sua festinha, apesar da minha ansiedade química, ou também por causa dela. é sempre muito bom saber que eu tenho uma casa e assustador perceber que eu não consigo mais botar os pés pra fora dela. espero estar com vocês pro resto da minha existência, porque sou dependente dos amores garantidos, he,he,he. já deu pra ver que eu vou ser a velha mais chata da sua vida, né? é que neste fim-de-semana descobri que nunca vou estar preparada pra livrar-me dos meus vícios: beber um pouco, me refugiar nos amigos e falar, falar, falar... ainda bem você não se importa de ouvir bobagens! te adoro, viu nega? os parabéns eu entrego no domingo. beijos e até lá.

Anônimo disse...

caralho, sonhei com fidel castro! estávamos sentados naqueles bancos compridos de refeitório, cada um de um lado da mesa que ficava encostada a uma janela grande de vidro. era dia, o lugar estava claro, só eu e ele, o refeitório vazio. ele velho, frágil, envergado, roupas largas de quem encolheu com a idade, um pijama azul e cinza chumbo. eu fiz um comentário infeliz sobre cuba, não me lembro o que foi que eu disse, mas o homem levantou irritado. ficou andando agitado pela sala, arrastando os chinelos no chão de cimento liso. falou que eu não sabia de nada, que não era nada disso, que eu estava equivocada e que o que eu estava dizendo era grande bobagem contra-revolucionária! dá pra acreditar nisso?! como se já não bastassem minhas culpas herdadas da infância, o colégio católico, deus toda noite ao meu lado perturbando meu sono, a isso se juntado as minhas nóias com trabalho (outro dia sonhei com meu orientador me cobrando páginas; aninha, querida, onde estão suas páginas?!) e agora: fidel castro! porra, a única certeza que eu ainda tinha é que jamais havia traído a revolução! e ainda tem gente que reclama de insônia, meu temor sempre morou no repouso... quando eu era criança o capeta habitava o andar de cima, agora meu inimigo é o meu corpo paralisado, que me obriga a fazer um esforço sobre-humano pra conseguir despertar. bom, esse papo todo meio que continua a história do texto que está aí, que é vergonhosamente autobiográfico e que bem poderia se chamar “paranóia” (3), em referência à cação do Raul (eu me identifico muito com esta música, he, he). mais beijos.

Anônimo disse...

ps: me avisa quando você tiver copiado as fotos pra eu poder apagar e enviar o resto, valeu?

O Nome da Rosa disse...

Essa culpa se deve ao fato de vc estar lendo os cubanos viadinhos contra-revolucionários. rs

Agora fiquei curiosa, no sonho o Fidel falava em espanhol ou em português?

Engraçado que durante muito tempo não lembrava dos meus sonhos. De uns tempos pra cá tenho sonhado e lembrado deles. Sonhos nítidos. Acho isso bom.

Bom que sonhando vc faz a digestão da psiquê, Anilda. =)

Agora toma guaraná em pó e ripa na chulipa.

Por mim, pode apagar e mandar brasa nas próximas. Acho que não apareço mais em nenhuma. heuheuehueheu

Um beijo.

Ps. Th, o Rimini é um viadinho-sem-sal. =P

Ps. Porra, vejam bem como é O GLOBO. Saiu uma reportagem sobre o filme. Aliás, foi uma entrevista com o Allan Pauls no caderno Ela de sábado. O tema da entrevista foi "As mulheres neuróticas" do filme. PQP. O autor disse que o Rimini poderia ser uma mulher. Que não foi a intenção dele fazer uma batalha entre os sexos. No mesmo dia saiu um reportagem no Prosa e Verso sobre algo tão inútil que nem lembro o que foi. Não é à toa que a Ilutrada da Folha dá de mil à zero nessa bosta. No final do Prosa e Verso tinha uma reportagem sobre os livros que tratam da chegada de D. João VI ao Brasil. Reportagem tÃOOOOOOOOOO xôxa.

=***

Anônimo disse...

recebi o email. pode falar com os caras (hg e fb)?

pois é. no filme, o rimini ainda se rebela, já que vai embora. o filme é uma merda mesmo. por isso, vou me regojizar pra ampliar meu vocabulário)com 'caótica ana'.

o prosa&verso e o idéias já deram o que tinham que dar (à exceção dum emprego pra mim ~)

ripa na chulipa é tão anos 80, mas metáforas futebolescas sempre caem bem.

mas a entrevista do OGlobo com o alan pauls é coisa de quem viu o filme e não leu o livro. que entrevistassem o babenco, porra. aliás, não sei pq pareço defender o livro, que nem vale tanto shshs.

vou voltar pro meu fantástico mundo. até breve =]

Anônimo disse...

regojizar (pra ampliar meu vocabulário)*

Anônimo disse...

sobre o filme na perspectiva do babenco etc.

http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/radar/9-4217-2007-11-07.html

Anônimo disse...

bom,já conversamos sobre o filme, mas essas entrevistas são mesmo um desastre (mais ainda nisso que chamam de "caderno feminino"). na flip colocaram o pauls pra debater com uma psicanalista (imaginem rímini no divã, sendo analisado por uma mulher, he,he,he). o argentino também gosta de fazer tipo, né? (isso é quase uma redundância, argentino fazendo tipo!). é o tempo inteiro o papo de que essa não foi minha intensão, e a intensão ninguém sabe qual foi. enfim, fala-se pouco do livro, muito dos afetos que ele insita.

pode chamar os meninos sim, thiago, a vontade. eu sou de casa (a da stella), ela não se importará. outra coisa: guilherme me mandou um e-mail me chamando encontrar com ele amanhã (quinta-feira) no lançamento da revista "confraria dos ventos". é no espaço oi futuro, aqui no flamengo (antigo museu do telefone). de repente seria legal pra você fazer uns contatos, pensa aí.

ps: fidel fala portuñol, he,he,he.

Anônimo disse...

oi!

é, eu sei onde é. mas amanha nem rola pra mim, tenho aula =]

mas valeu pelo convite!

viva o uruguai!

ahahah

Anônimo disse...

ôôô foi mal aí em cima,acontece quando me distraio. aliás,acontece o tempo todo.já estou sentido dores de estômago novamente,he,he,he.

Anônimo disse...

anna, os moleques tão perguntando que horas é a parada no sábado.

érica, vamos atualizar isso aqui, bora? shshs

O Nome da Rosa disse...

Manda um texto pro meu email que atualizo isso aqui. Ando com fobia de escrever.


Está tudo censurado aqui dentro.

O Nome da Rosa disse...

Pô, Anna. As poltronas do metrô de Buenos Aires são acolchoadas. É muita onda, gente. rs

Até hoje não entendi essa gíria de Já É e Já era.

Anônimo disse...

se liga

http://www.estilopuc.com.br/

ahahaha

O Nome da Rosa disse...

PQP.

Antes de ler, eu já sabia que os organizadores só podiam ser de dois deptos. Artes e Comunicação.

É e$tilo PUC.

O Nome da Rosa disse...

Não tenho IDÉIA do pq vc me mandou isso, se eu sempre andei mal vestida, batom nem sei o que é isso e a única passarela pela qual desfilo é a da feirinha da Pavuna. rs

Ps. E não frequentava o Pilotis. =P

O Nome da Rosa disse...

E a Anna Paula idem.