sexta-feira, 23 de maio de 2008

Uma lembrança dependurada na sacada.

Tinha o chão desnudo esperando o piso frio, quando naquela tarde quente lhe passamos a vista pela primeira vez. Depois de atravessarmos a estação de trem, perambularmos por todos os prédios do lado de lá, de duas águas minerais, suarmos em bicas e recebermos vários "não temos apartamento de quarto e sala para alugar", resolvemos, por indicação de um comerciante de carros usados, entrar numa imobiliária, que ficava escondida sob uma porta de madeira de lei, num prédio comercial.

Vi uma banheira daquelas antigas, verde. Um conjugado com uma banheira verde e uma janela de madeira carcomida pelos cupins maior que o apartamento. Lembrou-me a janela da casa da minha avó, janela esta, que escancarava a casa para o mundo e o mundo entrava com a intimidade de um amante para dentro da casa. Minha avó sempre abria a janela, cantando todos os dias uma música do seu tempo de menina, fazendo com que a luz do dia nos acordasse de forma abrupta. E de repente, quem entrava silenciosa pelas frestas, arrebentava nossas retinas. A manhã nos dava um tapa na cara.

Amei a janela. Era a janela da minha infância na casa da minha avó. O proprietário quer trocar, como já trocou os tacos do chão. Não queria que trocasse, só para seguir o ritual de girar o trinco, escutar o som do atrito do ferro e aspirar à rua através daquela moldura esbranquiçada. Já pensou: acordar num sábado de manhã e fazer o movimento de abrir os braços para deixar a luz entrar? Dispenso a visão translúcida e anti-séptica do vidro das janelas de alumínio. Já me basta esta janela de cristal líquido em 14 polegadas, pela qual vos falo.

Já na minha adolescência, vovó colocou grades nas janelas de madeira e nos vitrôs, assim como passou a chave na porta da rua. Januária na janela passou a ver o mundo fatiado em retângulos, porque aquela cidadezinha de 80 mil habitantes estava ficando perigosa.

Ter uma janela dessas, numa cidade como o Rio de Janeiro, é no mínimo um ato insano, tão insano que chega a ser obsceno não se proteger no clima de insegurança e paranóia geral.

Mas, que a minha pimenteira beberrona ficaria linda no canto do parapeito da janela...Ah! Ficaria!

quinta-feira, 15 de maio de 2008

É só a saudade que está pertubando meu sono. Diga lá, coração. Diga lá sua pele quente na minha pele. Diga lá seus pêlos, suas mãos, sua língua e um beijo teu na minha nuca. Eu me apaixonei por você depois daquele beijo na nuca. Foi tão fatal que deve ter atingindo meu cerebelo. Foi um beijo no cerebelo. Eu lembro. Aliás, eu vivo de lembranças. Ou revivo de saudades. Você me puxou para perto da sua boca, levantou os meus cabelos e revelou meu pescoço. Como é que eu posso esquecer disso? Deslocou a minha cabeça. Quebrou o meu pescoço como se degolasse uma galinha. E o meu corpo saiu andando, sem cabeça. Perdida por aí. Foi um beijo de amor, um beijo de morte, um beijo quente na nuca.






Texto retirado dos rascunhos de "O Nome da Rosa", escrito em 18/05/07

Obs. Aí Th, um velho texto inédito.