Saens Peña - Pavuna. Tabuleiros com cenouras em bacias azuis, tomates em bacias verdes, morangos em bacias amarelas, sardinhas-prateadas, namorados-rosados, moleque-piranha e uma jaula com 4 bodes dentro. Vertiginosamente, é isso que eu vejo andando apressada pela feirinha da Pavuna. Lá onde "a dona cebola que estava envocada deu uma tapa no seu pimentão". A feirinha esbanja cores e cheiros em contraste com o cinza do asfalto e na falta do verde-azul das árvores e do mar da zona sul. No meu caminho, sempre imagino as barracas de frutas, verduras e peixes, como contínuo cromático congelado. Se pudessem capturar as cores com os cheiros seria uma experiência estética e tanto. O que eu não vejo, sei que existe porque farejo.
Pergunto onde pego o ônibus para a Vila União, atravesso o centro de São João, chego na praça da Matriz que fervilha de gente nos pontos de ônibus, camelôs que vendem todos os sabores do biscoito fofura, todos os tipos de bala, todos os tipos de refrigerantes genéricos, além da coca-cola e pergunto de novo para um fiscal que está suando em bicas: "Onde pego o ônibus pro Ciep Jean-Batiste Debret?" Dou nome e sobrenome à escola. O fiscal responde: "Ah! O Ciep 179...Você pega o 103 pra Nilópolis."Dentro do ônibus pergunto ao trocador: "Falta muito?"
O Ciep tem nome de número e paredes azuis e vazadas. Aspiro poeira do caminhão que passa, vejo uma carroça logo a seguir. O ar de São João é carregado de uma poeira fina, que não é necessariamente do asfalto, parece terra.Essa escola me lembrou em alguma medida, uma escola que ficava na zona rural de Cruzeiro, na qual eu fazia estágio nos meus tempos de normalista. O ar tinha essa mesma consistência e coloração amarronzada. O ar tem gosto de terra. Terra seca. O bairro, onde se localiza a escola, fica na periferia de São joão e mistura elementos de subúrbio, favela, assim como, de uma cidade do interior. É um bairro pobre, com casas inacabadas, antigas e com um colorido desbotado. Como se a tinta das peredes tivesse dissolvido depois de tanta chuva ou como se fosse aplicada diretamente sobre o cal. As casas têm cores de giz. As ruas são asfaltadas, mas poeirentas. Imagino que aquela terra toda tenha origem nas ruas próximas onde o asfalto ainda não chegou. Meninos soltam pipas e jogam bola nas ruas paralelas à escola. Outros estudantes transitam na calçada indo em direção à escola de enfermagem que fica a dois quarteirões do ciep onde leciono.
Cada quarteirão tem no mínimo 2 botequins que nunca vi vazios no meu dia de trabalho. O porteiro da escola abre o portão, me cumprimenta e subo a rampa do Ciep até o terceiro andar. O chão é cinza, cor-de-grafite. Segue um barulho infernal, que ainda não consigo localizar com precisão de onde vem. As vozes ultrapassam as paredes brancas das salas, se misturam no corredor e chegam aos meus ouvidos.604. Abro a porta azul-marinho-acrílico. Entro: "Eu sou a nova professora de História de vocês".
+ Texto originalmente publicado no blog "O nome da Rosa" em 07 de Junho de 2007 sob o título:"Techinicolor".
Muita coisa mudou na minha forma de olhar o trajeto de casa até o trabalho. E o encantamento que sentia através do olhar distanciado, estrangeiro vem se transformando num olhar minuncioso, intimo ou, muitas vezes, pelo avesso: pela pressa, pela frequência, pelo cansaço, tenho olhado Meriti com indiferença.
A vida segue linear sobre os trilhos do metrô e com a precisão de um relógio atômico, em 45 minutos chego ao meu destino. Os gestos se dão de forma regular e constante acompanhando o tique-taque dos ponteiros.
A intimidade criada a partir da repetição dos dias, conteúdos e da paisagem suburbana congelada e inodora através dos vidros do metrô transforma o trabalho, muitas vezes, numa linha de produção e como um operário que prevê seu dia: bato o ponto.
No entanto, o cotidiano também traz um sentimento de pertencimento, de comunidade. Me vejo na fronteira, me equilibrando numa tênue linha entre a descoberta e a indiferença acerca da sub urbe.
A Pavuna é a última estação do metrô, é o fim da cidade, da urbe. Lá onde o Rio Cidade não chegou, onde a ruas se assemelham ao solo lunar e a sujeira carrega o rio Meriti. E passo todos os dias pelas barracas de fruta, pelos gatos nas barracas de peixe que atraem moscas varejeiras, pelo asfalto salpicado de escamas, pelos tomates apodrecidos, pelos ratos, pelo calor infernal, pelo burburinho dos passantes e pela fumaça negra expelida dos canos dos ônibus e kombis que saem do terminal rodoviário.
O contraste desse quadro com as imagens da minha infância e adolescência nas ruas limpas, amplas, asfaltadas e arborizadas da zona sul é um choque elétrico na espinha. Mais do que um exercício antropológico, onde me coloco no lugar do outro, me dói, todos os dias, chegar ao trabalho.
Me dói pela repulsa a tanta pobreza, por tanto descaso. Sigo. Engulo a poeira do ar e vou em frente, anestesiada.
É o abismo entre o trem e a plataforma. Quando chego em casa, é como se o metrô tivesse me teletransportado para outra dimensão de uma mesma cidade. A gente entra, senta, segue contínuo e quando sai do vagão está em outro lugar, completamente díspare.
A brutalidade da pobreza se contrapõe a suavidade dos meus alunos e alunas sob o uniforme azul e branco, os sapatos boneca e os trabalhos de escola. Alunos que não têm aquela arrogância característica das classes altas, de quem nasceu e foi educado para mandar: a classe patronal.
De todos os meus alunos, em todas as escolas em que trabalho, são com os alunos de Meriti que estabeleço laços de afeto, que me identifico.
Quase que norteada por um sentimento cristão, é por eles que eu sigo sem me importar que tenha deixado meus mortos de lado, apesar da saudade dos livros.
segunda-feira, 21 de abril de 2008
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