terça-feira, 21 de agosto de 2007

Decerto, a gente se conhece no cheiro

Despertou. O enquadramento da cabeça lhe parecia turvo, defeituoso. Farejou como fazem os bichos e os recém-nascidos: afundou o nariz nos seus cachos e lhe deu um beijo na nuca. Acorda, meu bem.

Tateou. Estava vermelho sob a velha camisa de algodão: ombro, costas, peito, barriga. Acorda meu bem.

Sofria de amor feliz, como se sua pele rememorasse em meio ao calor, a sensação de frio que sentira durante anos.

Às vezes, o via como um corpo estranho ao qual abraçava e enchia de beijos e pensava no quanto esperara por aquele estrangeiro de cheiro familiar. Contrariando seu temperamento revolto e sua recusa inicial, ela teceu, pacientemente, um contexto no qual a palavra deixara de ser muro para tornar-se ponte, atenuando a precária comunicação.

Num movimento que buscava romper a alteridade, ela retrocedia às suas besteiras de menina para progredir no entendimento. No intuito de diminuir a assimetria, seu pensamento ganhou forma, peso, volume e memória: concreto.

Levantou apressada, ligou a cafeteira, encheu duas canecas com café incorpado e quente desses que soltam o intestino e trazem esquecimento, abriu o chuveiro e enquanto sentia a pressão da água sobre seus frágeis ombros, tomava coragem para encarar o mundo porta a fora de seu apartamento. Ela não cabia naquele breve dia de 24 horas.

Coloca a roupa meu bem.

Sem tempo de digerir as lembranças do aroma da primeira fornalha de pão, ela lhe deu um beijo de partida, desceu a escadaria e já encoberta pela escuridão, ainda tinha seu cheiro entranhado nas narinas.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Literatura de viagem (texto da Anna)

(Primeira Estação)

E eu que acreditei que trabalhar no ensino público era minha grande missão neste mundo! Agora, depois de cinco conduções no trajeto de ida e volta para a escola, respiro devagar para minha vontade política não escapulir pelo nariz. Como a obrigação revolucionária acabou virando meio de sobrevivência, crio algumas formas de distração, não tenho alternativa no momento. No ônibus ou no trem, muitas vezes apelo para uma latinha de cerveja, que além de aliviar o calor adormece o corpo e abranda os pensamentos, e sempre que possível procuro ler pra não sentir o tempo de vida que perco me arrastando ou sendo arrastada até a periferia da cidade no horário do rush.

No início cheguei a me deter naquilo que diziam que como aspirante a intelectual era vergonhoso eu nunca ter lido. Esperava cobrir meus débitos de leitura, corrigir minhas falhas de formação. Com o tempo fui percebendo que a melhor opção era qualquer história que conseguisse não me provocar dor de cabeça. Seleciono com cuidado os textos que vão me ocupar: não muito densos ou herméticos, mas também não tão frívolos (melhor evitar contrastes radicais com o clima da condução, assim eu penso).

Há pouco iniciei a leitura de um romance que julguei adequado às minhas viagens de trem para o trabalho. Resolvi carregar o sarcasmo do autor na mochila. Encostada no fundo do último vagão, apoiei o braço esquerdo na lixeira de arame que fica presa à parede e embarquei na história tentando encurtar meu longo trajeto diário.
Só que, nesta ocasião, a viagem estava particularmente insuportável. Às cinco e meia da tarde do horário de verão o sol ainda frita minha moleira e o calor sufoca a mim e ao resto da plebe que viaja engalfinhada num vagão de trem com portas travadas e janelas estreitas. As pessoas que lotam a condução neste horário estão voltando pra casa, cansadas, depois de uma jornada de trabalho duro. Mesmo considerando minha condição privilegiada, por não ter acordado às cinco da manhã e por já estar alimentada e de banho tomado, confesso que naquela quarta-feira de fevereiro eu estava a ponto de me jogar nos trilhos, com mochila, livro e tudo.
Ao meu lado um homem alto e gordo transpirava aos pingos, ainda assim conseguia cochilar, de pé, sustentado por uma barra de apoio. Eu mesma sentia meu suor escorrer pelas costas e molhar a camiseta, que agora estava grudada no corpo e melada da fuligem do trem. Mais à frente alguns rapazes falavam alto e faziam piadas enquanto tentavam destravar uma das portas pra se aliviarem com o vento que corria do lado de fora. Eu já me afligi bastante com esse tipo de brincadeira, achava um absurdo que as pessoas arriscassem a vida desse jeito, se um sujeito desses cai, morre na hora, acontece com freqüência. Hoje sou capaz de entender que se amontoar no caixote de lata numa tarde tão abafada é uma empreitada sobre-humana, e fico é com inveja da ousadia deles.

O problema é que desde que a empresa ferroviária foi privatizada colocaram seguranças nas estações pra reprimir a “imprudência” dos passageiros. Já vi, mais de uma vez, trabalhador tomar porrada de cassetete com o trem em movimento e ser obrigado, pelo susto e pela dor, a largar a porta automática que se fecha por pressão. Dá pra ouvir o estalo de osso trincando, TAC!, depois, as gargalhadas e a zombaria do povo dentro do vagão. É a Rede Ferroviária zelando pelo bem estar de seus clientes e pela preservação de sua propriedade. Se tiver que pagar indenização por todo pé-rapado que se acidenta a empresa vai à falência, parece justo que se preocupem.

Bom, ninguém caiu nem apanhou no dia mais quente do ano. Dementes, suportávamos uma hora de enfadonha tortura. Cá no meu canto eu teimava em me esquivar da experiência me refugiando num texto qualquer. Também pode ter sido alguma obra crucial, uma dessas que descrevem com rigor ou escárnio a vida dura ou a ironia nossa de cada dia. No fim das contas não importam quais os livros, a história vale para entender que, um pouco intencionalmente, fui permitindo que o pequeno acúmulo de leitura formasse uma lente espessa sobre meus olhos. Ainda não sou capaz de avaliar o grau de distorção atingido aqui desta perspectiva, mas não há dúvida de que já há algum tempo me deixo levar por uma espécie de existência mediada.

Também não é recente o conflito intelectual gerado pela tensão entre as letras e a vida. Quantos já não protestaram contra a inclinação banal de acomodar a realidade nos livros! Uma operação mais bem-sucedida é a de tomar a leitura como complemento da experiência, como forma de dar sentido ao vivido, meio de atribuir caráter à matéria. Ou ainda buscar nas obras resquícios de existência. O registro preservado das experimentações alheias. A inscrição de algumas das muitas ações possíveis. No meu caso a propensão tem sido a de me perder no refúgio e me consumir na imobilidade.
Mas ainda posso crer que as viagens de volta para a baixa urbe têm força para me chacoalhar o juízo e me restituir ao movimento. É como se esse deslocamento no sentido contrário ao que eu segui quando saí da periferia para ir à universidade me colocasse novamente em estado de trânsito. Volto para casa consideravelmente transfigurada, com alguns livros na bagagem e a sensação de que já não caibo no lugar que por anos insisti em afirmar como meu. Está certo que eu também nunca me acomodei por completo dentro do que eu considerava o fora. Acabei me convencendo de que minha ventura é dizer respeito à estrada de ferro.