terça-feira, 7 de agosto de 2007

Literatura de viagem (texto da Anna)

(Primeira Estação)

E eu que acreditei que trabalhar no ensino público era minha grande missão neste mundo! Agora, depois de cinco conduções no trajeto de ida e volta para a escola, respiro devagar para minha vontade política não escapulir pelo nariz. Como a obrigação revolucionária acabou virando meio de sobrevivência, crio algumas formas de distração, não tenho alternativa no momento. No ônibus ou no trem, muitas vezes apelo para uma latinha de cerveja, que além de aliviar o calor adormece o corpo e abranda os pensamentos, e sempre que possível procuro ler pra não sentir o tempo de vida que perco me arrastando ou sendo arrastada até a periferia da cidade no horário do rush.

No início cheguei a me deter naquilo que diziam que como aspirante a intelectual era vergonhoso eu nunca ter lido. Esperava cobrir meus débitos de leitura, corrigir minhas falhas de formação. Com o tempo fui percebendo que a melhor opção era qualquer história que conseguisse não me provocar dor de cabeça. Seleciono com cuidado os textos que vão me ocupar: não muito densos ou herméticos, mas também não tão frívolos (melhor evitar contrastes radicais com o clima da condução, assim eu penso).

Há pouco iniciei a leitura de um romance que julguei adequado às minhas viagens de trem para o trabalho. Resolvi carregar o sarcasmo do autor na mochila. Encostada no fundo do último vagão, apoiei o braço esquerdo na lixeira de arame que fica presa à parede e embarquei na história tentando encurtar meu longo trajeto diário.
Só que, nesta ocasião, a viagem estava particularmente insuportável. Às cinco e meia da tarde do horário de verão o sol ainda frita minha moleira e o calor sufoca a mim e ao resto da plebe que viaja engalfinhada num vagão de trem com portas travadas e janelas estreitas. As pessoas que lotam a condução neste horário estão voltando pra casa, cansadas, depois de uma jornada de trabalho duro. Mesmo considerando minha condição privilegiada, por não ter acordado às cinco da manhã e por já estar alimentada e de banho tomado, confesso que naquela quarta-feira de fevereiro eu estava a ponto de me jogar nos trilhos, com mochila, livro e tudo.
Ao meu lado um homem alto e gordo transpirava aos pingos, ainda assim conseguia cochilar, de pé, sustentado por uma barra de apoio. Eu mesma sentia meu suor escorrer pelas costas e molhar a camiseta, que agora estava grudada no corpo e melada da fuligem do trem. Mais à frente alguns rapazes falavam alto e faziam piadas enquanto tentavam destravar uma das portas pra se aliviarem com o vento que corria do lado de fora. Eu já me afligi bastante com esse tipo de brincadeira, achava um absurdo que as pessoas arriscassem a vida desse jeito, se um sujeito desses cai, morre na hora, acontece com freqüência. Hoje sou capaz de entender que se amontoar no caixote de lata numa tarde tão abafada é uma empreitada sobre-humana, e fico é com inveja da ousadia deles.

O problema é que desde que a empresa ferroviária foi privatizada colocaram seguranças nas estações pra reprimir a “imprudência” dos passageiros. Já vi, mais de uma vez, trabalhador tomar porrada de cassetete com o trem em movimento e ser obrigado, pelo susto e pela dor, a largar a porta automática que se fecha por pressão. Dá pra ouvir o estalo de osso trincando, TAC!, depois, as gargalhadas e a zombaria do povo dentro do vagão. É a Rede Ferroviária zelando pelo bem estar de seus clientes e pela preservação de sua propriedade. Se tiver que pagar indenização por todo pé-rapado que se acidenta a empresa vai à falência, parece justo que se preocupem.

Bom, ninguém caiu nem apanhou no dia mais quente do ano. Dementes, suportávamos uma hora de enfadonha tortura. Cá no meu canto eu teimava em me esquivar da experiência me refugiando num texto qualquer. Também pode ter sido alguma obra crucial, uma dessas que descrevem com rigor ou escárnio a vida dura ou a ironia nossa de cada dia. No fim das contas não importam quais os livros, a história vale para entender que, um pouco intencionalmente, fui permitindo que o pequeno acúmulo de leitura formasse uma lente espessa sobre meus olhos. Ainda não sou capaz de avaliar o grau de distorção atingido aqui desta perspectiva, mas não há dúvida de que já há algum tempo me deixo levar por uma espécie de existência mediada.

Também não é recente o conflito intelectual gerado pela tensão entre as letras e a vida. Quantos já não protestaram contra a inclinação banal de acomodar a realidade nos livros! Uma operação mais bem-sucedida é a de tomar a leitura como complemento da experiência, como forma de dar sentido ao vivido, meio de atribuir caráter à matéria. Ou ainda buscar nas obras resquícios de existência. O registro preservado das experimentações alheias. A inscrição de algumas das muitas ações possíveis. No meu caso a propensão tem sido a de me perder no refúgio e me consumir na imobilidade.
Mas ainda posso crer que as viagens de volta para a baixa urbe têm força para me chacoalhar o juízo e me restituir ao movimento. É como se esse deslocamento no sentido contrário ao que eu segui quando saí da periferia para ir à universidade me colocasse novamente em estado de trânsito. Volto para casa consideravelmente transfigurada, com alguns livros na bagagem e a sensação de que já não caibo no lugar que por anos insisti em afirmar como meu. Está certo que eu também nunca me acomodei por completo dentro do que eu considerava o fora. Acabei me convencendo de que minha ventura é dizer respeito à estrada de ferro.

13 comentários:

Anônimo disse...

Anna-Paula-lima-barreto. ;)

Acho que o Mauro também vai se identificar com seu texto Anna. Aliás, os professores de história postantes com certeza vão se identificar. hehe Beijo.

Mas escreve bem demais. =)

Anônimo disse...

fiz metade de uma faculdade de história; posso me identificar pela metade? |P

mas por que apenas professores de história? até o gordinho suado, que nunca lerá esse blog, também pode se identificar.

mas o texto marca bem o quadro atual do nosso país, além de ser uma teoria da leitura.

érica, foi ontem que a gente conversou sobre leitura no trem?

e parabéns pra anna.

Anônimo disse...

Onde eu disse que APENAS professores de História vão se identificar com texto?

Mauro Amoroso disse...

Me identifiquei mesmo.
Apesar do meu trajeto ser bem mais solitário (eu, motorista e cobrador) por dar aula à noite. Mas é impressionante essa liuagção que estabelecemos com nossos trajetos de trabalho... tanto que tb já escrevi sobre isso,heheheheh
Agora temos que escrever coisas tipo o atraso do primeiro salário...
Vlw!

Laura Assis disse...

Passo pela mesma situação e fiquei muito tempo, teimando, tentando tirar o atraso dos textos teóricos dentro dos ônibus apinhados de gente quando vou dar aula...não dá, desisti.
Agora vou apenas ouvindo música e pensando na vida...quando resolvo ler, leio algo bem leve.Deixo Sarte, Benjamim e cia prá outros momentos.Não consigo assimilar esse povo enquanto sacolejo do lado de umas tias falando de novela...=)

Anônimo disse...

é inevitável, eu sempre questiono a relevância do que leio ou escrevo durante minhas excursões involuntárias pro trabalho. o estranhamento, o sarcasmo ou a eventual curiosidade intrigada das pessoas comuns – comuns como eu, que certa vez satirizei um indie que lia de pé, encostado no balcão do pé-sujo vizinho à casa da matriz, um livro escrito em inglês –; certo grau de deboche, em tais circunstâncias, têm muito mais razão de ser que a minha pobre teimosia presunçosa.

Anônimo disse...

Narciso acha feio o que não é espelho...

Anônimo disse...

antes fosse simples assim. o drama, por falta de palavra melhor, é não encontrar espelho em nenhum dos lados, nem na universidade, nem nos vagões do saracuruna, muito menos na casa da matriz, onde fui parar por acaso. ainda insisto em me ver (por inteiro) como os que andam de trem, mas no fundo sei que a insistência é ingênua. tenho tentado me tornar mutante, já com algum sucesso.

O Nome da Rosa disse...

É Anna. Se a modernidade viu o nascimento do indivíduo, a pós-modernidade está vendo o seu esfacelamento. Tudo ao mesmo tempo agora.

Anônimo disse...

Os espelhos partidos têm muito mais luas...

Anônimo disse...

miss reeves (de virgínia woolf, apresentada a mim por bill)

"encontrei-a no jantar a noite passada. (...) ela sempre se inclina para frente, como se fosse levantar voo; o todo de sua figura e postura indicia um espírito apaixonante e interessado. quando está em silêncio, pensa - seus olhos se fixam em um ponto. mas ela fala quase sem parar, lançando-se a si mesma com a maior felicidade - mas nada do que diz é banal. em seguida muda o rumo da conversa para questões sociais; não se trata de exposição estéril, mas de uma explicação vigorosa e bastante lúcida. (...) sua vitalidade foi o que mais me impressionou - o fato de que não era pedante.
imagino que seu gosto e sua percepção não sejam dos melhores; quando descrevia as pessoas, o fazia com uma série de clichês, o que resultava em uma visão bastante ordinária. parecia determinada a ser humana também; a gostar das pessoas, ainda que fossem estúpidas.
sua concentração em uma visão de mundo, e seu interesse nela, pareceram a mim as coisas mais extraordinárias a seu respeito; com aquela energia pode-se fazer muita coisa, ainda que não se tenha uma capacidade das mais elevadas. falta-lhe mistério; e o encanto que têm as pessoas que se recolhem e não se ocupam em arquitetar seus pontos de vista. imagina-se que ela esteja sempre em pleno vôo; tão determinada em abraçar tudo que acaba malogrando."

envelhecer é encolher aos poucos (isso também não é meu).

para nós três.

Anônimo disse...

Vou ali me matar e já volto.
dêem comida aos gatos.

Anônimo disse...

eu estava me referindo a mim... me identifiquei, postumamente, com esta descrição.