terça-feira, 3 de julho de 2007

II - OOT

O sonho perseguiu-o durante muito tempo. Tanto tempo que já não se lembrava dele com um sonho, mas como um acontecimento real. O estranho é que não se inscrevia na sua memória como um acontecimento passado mas como um acontecimento futuro. Não tinha aquele sabor de frutos secos, que tem tudo aquilo que pertence ao passado, pelo contrário estava de tal maneira vivo, que se introduziu na sua vida como um espinho na carne. Era como se um novo personagem tivesse entrado em cena, à revelia, depois do pano cair. Um pósfacio como um vírus, um hacker conduzindo a história a novos destinos: o romance finalmente liberto da tirania do criador.

III

7.30 am Rádio Comercial de Notícias
chile, américa latina, pinoché, violência, mortos, trabalhadores, exército, confrontos, crianças, incêndio, casa, família, mortos, governo, guerra, revolução, poder, povo, assassinio, Allende, luta, mortos, mortos, mortos, mortos...

Uma forte dor de cabeça trouxe-o até à realidade, momentaneamente. A luz infiltra-se pela janela do quarto semi-aberta, dolorosa, tal como o ruido que chega lá de fora, vozes e automóveis ruidosos, misturam-se com o locutor da radio que continua a debitar notícias:

avião, 260, abatido, pessoas, sul-coreano, mortas, erro, assassinio, desculpas, soviéticos, espionagem, civis, guerra, fria, americanos, povo, ocidente, blocos, leste, capitalismo, 260 mortos, erro, civis, inocentes, mortos, mortos, mortos, mortos...

Às apalpadelas, conseguiu colocar em off o radio-despertador e voltou a refugiar-se debaixo dos cobertores, sem som, sem imagem, regressou sem sobressaltos ao sono apaziguador, na doce casa do ópio,pensou, já incorpóreo.

IV

Macio. Ouve o estalar entre as bechas do acetato, enquanto acende o cigarro. Da mesa se pode ver o letreiro vermelho já com a tinta desbotada: menu.
Levanta-se, caminha oito passos, vira à esquerda e entra numa saleta iluminada por uma lamparina vermelha situada no centro. Sua sombra rabisca vultos nas paredes descascadas. Eco.

9 comentários:

Anônimo disse...

agora é aguardar o português oot! eheh

Laura Assis disse...

Lindo como sempre...admiro s forma como sues textos mesclam for�a e delicadeza.

Estou adorando o fato de voc� ter esse blog aberto agora!

=*

Arnaldo Sobrinho disse...

Vim por um link no blog da Laura...forte a imagem dos "frutos secos"...Muito bom o texto. Vou linkar ao meu blog, e ficar por aqui também.

Anônimo disse...

Tô vendendo meus livros.

Confira a lista:

http://lunataque.multiply.com/journal/item/31

Anônimo disse...

Tá nesse nível? Se desfazendo do que tu mais gosta? Vende o rim, porra. rs

Natasha Pinto disse...

mortos, mortos, mortos...
quantos, tantos, muitos!

mortos, mortos.
eco.

Anônimo disse...

"Só foi o t dizer que ia desistir da literatura pra nevar em Buenos Aires".

e a gt que nunca levou fé nos românticos, que a natureza se compadecia da dor dos homens...

eu venderia meu coração, se ainda tivesse um uhauha

Anônimo disse...

Quanto DrAmA, meodeos.

Tu devia frequentar a baixada fluminense.
Depois nego me pergunta porque eu gosto de lecionar pra ensino médio. Por isso: existem problemas mais sérios e concretos que o nosso ego, nosso ísmo, nosso egoísmo.
Me conecta à realidade (Nem vem dizer que a realidade não existe). E páro de pensar que o mundo é uma grande biblioteca.

Anônimo disse...

Porque ler os clássicos

Acho que estou lendo romances demais! O pior é que essa seqüência batida de crise existencial, niilismo e melancolia já não dá caldo há muito tempo. Nunca me convenceu. Todo dia quando pego o trem pra trabalhar penso: “se liga criatura, fica esperta, a vida é muito mais rápida que você!”. Ontem ouvi uma amiga enumerar “as boas razões para ler os clássicos”. Não consegui reconhecer motivo melhor que a fruição, o encantamento. Minha amiga tem muito mais profundidade que eu, enxerga detalhes sutis, tira conclusões brilhantes. Eu normalmente recuo diante do incômodo de carregar um livro de 500 páginas para ler no trem, por isso reservo os clássicos para minha aposentadoria.
A professorinha se apressa ao ouvir a chamada de embarque do trem das 17:34. “Plataforma 12 linha M”, alguém anuncia pelos alto-falantes. Ela corre com cautela, temendo que o solado liso da sapatilha a faça escorregar no ladrilho. Por pouco não é atropelada por uma multidão afoita. Entra no vagão destinado às mulheres, porque é o primeiro e porque é um pouco mais vazio que os mistos, daí a vaga possibilidade de conseguir viajar sentada. Expectativa frustrada. As outras são sempre mais ágeis que ela. O temperamento tímido e o peso dos livros limitam seus movimentos. Suspira com desânimo e procura ajeitar-se num canto distante da porta. Ali pode se segurar e proteger-se do fluxo de passageiras que vão entrar e sair nas próximas estações (mais entrar do que sair).
Conformada em ter que passar quase uma hora sacolejando e sentindo um cheiro ruim de borracha queimada que ninguém sabe dizer de onde vem, pega um dos livros da mochila e tenta mantê-lo erguido na frente do rosto usando apenas uma das mãos (a outra está ocupada em garantir o equilíbrio de seu corpo). Faz isso muito desajeitadamente. As páginas só podem ser viradas quando o trem para nas estações, ou, a muito custo, com a ajuda do polegar. Tudo bem, o que se lê não é digerido em pouco tempo mesmo, exige respiração longa, concentração, reflexão. A cabeça da professora dói um pouco. É difícil absorver-se com todo aquele ruído, e a luz é muito fraca.
Neste momento diz para si mesma, chamando-se pelo primeiro nome, que tem que tomar o exemplo dos que encaram a vida sem choramingar. Pensa que ela parece ser a única com ar de lamúria naquele vagão. Volta atrás: “essa droga de viajem esgota qualquer cristão, mais ainda os de pouca fé”. Quando enfim a leitura “pega no tranco”, o conteúdo do livro se choca violentamente com o que acontece a sua volta. “A vida simpática de intelectuais notívagos na Paris dos anos sessenta” ou “Aventuras sexuais chamadas de experiências existenciais por uma escritora-mulher-do-sexo-feminino” têm suas frases cortadas por pedaços de conversa sobre a preguiça de fazer o jantar pro marido que não gosta de comida requentada. “Trabalhei muito hoje, por mim esquentava o arroz e fritava um ovo”. “Eu estou ensinando o fulano a cozinhar, se não aprender, que jante na casa da mãe dele”.
Do outro lado do vagão, o alvoroço em torno de uma partida de sueca. Todas as tardes a turma do carteado se reúne no mesmo lugar. No terminal ferroviário, os homens entram no vagão misto. Quando o trem para na estação seguinte, onde não tem segurança controlando, passam pro carro feminino e iniciam o jogo com as mulheres que ficaram guardando seus lugares.
Depois de tantas viagens, os palavrões não impressionam mais a professora, mas esvaziam seu interesse pelos intelectuais franceses. Ela observa as pessoas, reconhece, em palavras e gestos, semelhanças com seus alunos do ensino noturno. Olha com distanciamento. Sente-se estranha a tudo aquilo. Pensa em escrever sobre isso. “Bobagem!”, reage, “também fiz supletivo e sempre tenho preguiça de cozinhar à noite”. Assusta-se com o que a universidade lhe fez. Se tivesse parado no colegial hoje seria balconista no comércio do centro da cidade e voltaria pra casa todos os dias lendo a “Revista dos Famosos”, segundo lugar no ranking de best seller do trem, depois do “Jornal Popular” e antes da “Bíblia Sagrada”.
Então lembra do dia em que saiu de casa mais cedo e conseguiu viajar sentada, de frente pra uma senhora que lia um romance muito respeitado na literatura nacional. Um livro consagrado que já merecera uma dúzia de edições de bolso impressas em papel-jornal (baratas e levíssimas!). Por coincidência estava relendo o mesmo livro. Teve vontade de puxar assunto com sua cúmplice, saber o que ela achava da história, mas não teve coragem de interromper a leitura alheia. Segurou seu exemplar na altura dos ombros na esperança que a outra passasse os olhos pelo título em um momento de distração. Também não funcionou. Neste instante desejou livrar-se da mania feia de xeretar o que as pessoas lêem no trem, evitar enfiar a cara com indiscrição nas letras dos outros. Às vezes quase cai se contorcendo para ver as capas: romances espíritas, manuais de boa conduta em entrevistas de emprego, folhetos evangélicos, um ensaio sociológico com o carimbo da biblioteca da universidade onde estuda, “com certeza um aluno bolsista como eu...”.
Acorda de seus pensamentos quando percebe que a próxima estação é a sua, “atenção ao vão entre o trem e a plataforma!”, alerta a voz dos alto-falantes. Só então guarda o livro, desce do carro, e volta a correr pra pegar o ônibus que vai deixá-la, atrasada, na porta da escola onde trabalha tentando convencer da importância de ler os clássicos.