domingo, 22 de julho de 2007

Publicação do texto de OTT

V

Apaga a lamparina . Junto á janela está uma poltrona de veludo coçado, amarelo-dourado, costas altas e braços arredondados. Afunda-se nela com as molas a ranger ameaçando furar o pano – bem as sentia, espetadas, ao fundo das costas. Puxou para sí uma pequena mesa retangular, com tampo de mármore e um minusculo cinzeiro de prata em cima. Alguns raios de sol penetram através de uma estreita fenda da janela entreaberta e perfuram a penumbra como um laser, fazendo bailar uma miríade de particulas de pó. Um caleidiscópio - pensou . Em criança, este fenómeno parecia-lhe coisa de cinema, uma lâmpada mágica. Nas férias de verão, na aldeia, em casa dos avós, acordava muitas vezes com esses raios de sol a bater-lhe na cara, vindos das muitas fendas existentes no telhado de telhas soltas – a todo o momento esperava ver saltar à sua volta gnomos, duendes e fadas. Uma baforada de fumo em circulos concêntricos invadiu o feixe de luz e trouxe-o à realidade – esmaga o cigarro bruscamente na prata enegrecida do cinzeiro – tem de perder este hábito de sair da cama já com o cigarro nos beiços. Levanta-se e espreguiça-se, sentindo ainda uma leve dor latejante nas têmporas. Nada que uma chávena de café quente , preto e espesso não resolva. Caminhou para a cozinha através do corredor, com os pés nus acariciando a madeira velha, rugosa, do soalho. Lá está em cima da banca, ligada á tomada, uma cafeteira de balão de vidro e filtro de papel. Não será a mesma coisa que um café expresso bem tirado, mas por agora terá que servir. Lá de fora chega-lhe um ruido urbano de carros e conversas de vendedores. Sente-se contente, chegou à cidade poucas horas antes e num golpe de sorte tinha conseguido encontrar o sítio ideal, perto daquilo que procura, ainda por cima relativamente barato. Não era pelo dinheiro, mas era necessário um lugar sossegado, perto do centro mas discreto. Fora uma coincidência extraordinária o homem do taxi, que o transportara desde o aeroporto, conhecer aquela casa e o seu proprietário , ainda mais acordado aquela hora da madrugada. Passar no bar do dono, combinar com ele e receber a chave, foi relativamente fácil, apenas lhe custou alguns gins tónico, muitos cigarros e uma grande dor de cabeça. E agora ali estava. Claro que não tinha o conforto dos muitos hoteis em que já tinha estado, era um 2º andar de uma casa velha, desconfortável e anacrónica, que parecia não ser habitada hà muitos anos. Para lá chegar era necessário subir uma escada íngreme de madeira gasta, em caracol largo, com um corrimão de madeira escura, polida, que volteava em direcção ao desconhecido. Quando a subiu a primeira vez a meio da noite, apenas com uma luz débil, amarela e suja, por um momento sentiu-se num filme do Hitchcock, Vertigo, talvez. . Mas agora parecia-lhe estranhamente familiar, uma sensação de nostalgia invadiu-o desde o primeiro momento. Enquanto saboreia o café, acompanhado de mais um cigarro, puxa a persiana emperrada e olha pela janela: lá está o rio ao fundo, seguindo calmamente as suas margens tranquilas. Visto daqui, da parte velha da cidade, com o casario de permeio, as chaminés e os terraços, nada parece mudado. O centro histórico foi preservado. Apenas ao longe do outro lado do rio, na margem esquerda, três torres gigantescas evocam o presente e que muitos anos se passaram desde a última vez que tinha olhado aquela paisagem e o rio - o seu Mississippi. O zumbido do telefone móvel sobressalta-o: - Ok. estarei na rua dentro de 15 minutos, o plano segue conforme o combinado!

9 comentários:

O Nome da Rosa disse...

Já deixo avisado de antemão que não tenho cacife pra te acompanhar. rs

Gostei demais do texto. =)

Anônimo disse...

eu sempre fico impressinada com a capacidade que os bons escritores têm de poetizar os detalhes mais insignificantes, extrair sentido de onde eu só vejo matéria. duas das muitas razões pelas quais eu jamais poderia ser escritora são que na maior parte do tempo só percebo o que é explícito, e sou incapaz de falar sobre algo que não vivi. quase tudo o que eu produzo é panfleto, ilustração de discurso. não renego minha dureza, ela me tem sido útil, mas admiro sinceramente o tipo de delicadeza que você expõe nos seus textos. parabéns!

Anônimo disse...

Explícito pra quem?

Anna Paula, tu escreve MUITO melhor que MUITO Professor Doutor que falar em amor e em cortar os pulsos da maneira mais clichê possível que a gente conhece. hehe E vc é delicada até na expressão corporal enquanto fala. Lembrei disso pq um dia estava lá no apto antigo da Glória reparando na maneira como vc mexia as mãos quando explicava alguma coisa. Delicada. =D

Ps. Tô achando estranho que até agora o autor deste texto não deu o ar da graça aqui.

Anônimo disse...

Obrigado a ambas pelos comentários lisonjeiros, mas certamente exagerados. Com rudeza ou com delicadeza, escrever ( a arte de uma maneira geral ) penso que tem mais a ver com inquietação, e desassossego perante o mundo, com criatividade e imaginação e de algum modo com o síndrome de Peter Pan! rsss. Também tem a ver com sensibilidade e isso eu sei que a Erica tem de sobra! A Anna eu não conheço ( a Erica tb não, rs )mas a sua escrita é reveladora. Acho que escrevem as duas muito bem e era interessante ver até onde podíamos ir construindo uma história a "várias mãos" com vários personagens, em várias geografias e sem um tempo real,linear, isto é abrangendo o passado, o presente e o futuro e eventualmente um tempo onírico. Em algum momento essas personagens teriam que se cruzar ( ou não )ou pelo menos os acontecimentos por ela desencadeados teriam que se relacionar. Um pouco a semelhança daquilo que vemos no filme Babel. Também me ocorre por isso a Biblioteca de Borges. Também o nome deste Bloggue é muito acertado ( Entropia ) e tudo isto poderia funcionar como uma metáfora sobre a Internet. Pronto acho que me entusiasmei...

P.S. Se O Nome da Rosa achar bem pode acrescentar o capítulo seguinte assinado pelo " O Outro ".

Anônimo disse...

muito bom Érika estar de volta aqui. tô gostando muito, incrível, você escreve bem demais.

Estarei sempre te visitando

Beijos, Thiago

Anônimo disse...

Thiago, estou lisonjeada, mas o texto não é meu. hehehe

Beijo.

Dazi disse...

Ah! Roubaram o blog! :P

Anônimo disse...

Conheço vc, Carol?

Costumo publicar os textos dos meus amigos. =)

Dazi disse...

Conhece meus colares! Sou eu, Carola! :P