Acendeu um cigarro na Rua das Flores, chegou até a escadaria do metrô e parou até que o cigarro acabasse. Ele encostou aquela barba fina no seu rosto e deu-lhe um beijo. Quente. Ela desceu as escadarias com passos apressados, segurando uma pasta verde de plástico transparente brilhante. E tal qual uma tartaruga, levava uma mochila pesada nas costas.
Um duplo, por favor. Atravessou a roleta, o vão entre o trem e a plataforma e acomodou-se em uma cadeira lateral no canto do vagão. Dublinenses para distrair a viagem. Não viu muita diferença entre as paisagens correntes na janela e a descrita por Joyce acerca dos pobres da Irlanda no início do século XX. Dublin era quase o Rio de Janeiro em O Cortiço.
A sua tendência era a de grafar todas a palavras que não conhecia com um asterisco, a lápis. E pensava na destreza do tradutor em encontrar palavras em português análogas às originais em inglês. Lembrou da tradução de Ulisses de Houaiss. Que lástima!
Depois de seis estações, entediou-se com Joyce. Lembrou do rosto quente pela manhã e do ranger da cama de móbile. Pensou: "Até a estação de Vicente de Carvalho são 20 minutos." Com a pasta em seu colo, ela criava dezenas de formas, pressionando com dedos o reflexo da luz do vagão sobre o plástico macio da pasta.
Na estação de Irajá entrou um rapaz que usava brincos nas duas orelhas, vestia uma camisa de linho branca e calça de brim de mesma cor. Sentou-se na cadeira em frente à sua e retirou de uma bolsa preta um livro de Stephen King.
Ao seu lado, sentou-se uma moça pálida. Ela usava vestido e meia-calça azul royal. A moça tinha mãos delicadas e pequeninas, de unhas rentes à carne e usava um esmalte cor de pele, cuja invisibilidade contrastava com as matizes da sua roupa. Aquela moça era quase um espectro vestindo azul. Abriu um livrinho em francês com uma ilustração bem-humorada na qual um menino segurava um buquê de flores maior que seu corpo.
A moça do vestido azul royal, como ela, também grifava algumas palavras a lápis. Na cadeira à sua frente, estava sentada uma senhora negra, robusta, que lia atentamente um livrinho de capa cinza: o antigo testamento.
Na solidão daquele vagão onde circulavam os ecos de Joyce, Stephen King e Jesus Cristo, de vez em quando, ela se deparava com o reflexo iluminado das lentes do seu óculos de grau no vidro enegrecido do metrô.
Feliz, entrelaçava as imagens dos bêbados do centro de Dublin com o cheiro do seu quarto às cinco horas da manhã. Transpiravam o aroma da primeira fornalha de pão que subia pelos galhos da árvore abaixo da sua janela enquanto as quatro paredes que os cercavam ganhavam cor na medida em que o dia amanhecia. Os cheiros, gostos e sons misturavam-se e como uma reação alquímica ao abafamento do ambiente, ganharam contornos, condensando-se numa intersecção de sombras azuladas no final do dia.
Sentido/to Saens Peña. Subiu as escadarias, comprou dois maços de cigarro na banca de jornal, passou pela Rua das Flores. Em casa.
sexta-feira, 13 de julho de 2007
Assinar:
Postar comentários (Atom)
14 comentários:
antes de mais nada, tudo diz:
acho q vc tem forte influencia realista no seu texto
antes de mais nada, tudo diz:
talvez seja sua formação em historia
Erica diz:
Joyce faz muitas descrições nesse livro
Erica diz:
e eu gosto de descrições
antes de mais nada, tudo diz:
mas descrição das ações?
antes de mais nada, tudo diz:
eu sei
Erica diz:
sim
antes de mais nada, tudo diz:
por isso nao comentei, ja q detesto
antes de mais nada, tudo diz:
auhuah
Erica diz:
pode comentar
Erica diz:
que detesta
antes de mais nada, tudo diz:
eu sei
antes de mais nada, tudo diz:
mas vc gosta
antes de mais nada, tudo diz:
e tenho q respeitar
Erica diz:
vou postar sua frase nos comentários
Erica diz:
hauhauahuahauhauah
*** Descrições do realismo. (L).
pra mim, isso é virtual e não realismo.
Pra vc o realismo não existe. haha
"A realidade é a utopia da arte." ^^ (Sobrancelhas levantando e abaixando).
Eitcha, Roland Barthes.
Muito bom!
Gosto de textos cheios de descrições, elas aguçam minha imaginação.
Lembro no filme Cidade dos Anjos, em que o personagem principal (o anjo que ficava na biblioteca) elogia uma autora que descrevia o gosto das maças e fazia assim com que ele podesse imaginar como era aquilo.
Pois é, Will. Eu to lendo "O Cortiço" e profundamente influenciada pelas imagens do Aluísio de Azevedo, que segundo ele, se não fosse escritor, seria pintor.
Eu também gosto do realismo. =)
Ps. Ele elogia Hemingway. Lindíssima essa parte.
Achei o texto muito bom
e até balancei aqui no vagão do trem de tão real
\o/
Dependendo do dia, eu vou flutuando. hauhauahuahauhauh.
Gostei bastante. Você também fica imaginando a vida dessas pessoas quando elas deixam de ser suas vizinhas de ida ao trabalho/casa?
O cara de branco era enfermeiro ou médico ou fisioterapeuta. Assim deduzi. E a mulher de azul devia estudar ou lecionar na UERJ algo relacionado à literatura ou línguas, já que ela saltou no maracanã.
Mas eu fico imaginando mesmo é quem mora nas casas por onde passa os trilhos do metrô. Na estação de colégio, por exemplo, dá pra ver umas casas com piscina, grandes, diferente da estação de Irajá ou Acari.
Também viajo sobre quem mora naquelas casas perdidas no meio de uma estrada qualquer, no meio do nada. Sabe aqquelas casa que durante a noite são o único ponto de luz em kilômetros? Quem será que mora nelas? Tu já se perguntou isso?
eu sempre encano com isso quando viajo de ônibus (e tu sabe que eu sou rodada!). já houve tempo em que eu tive vontade de morar num daqueles galpões abandonados do cais do porto, ou nas ruinas de um prédio que também fica no caminho da pavuna, não lembro em que altura. estranho, né? adorei seu texto, baby, suas descrições são poéticas, são fruto de seu olhar inquieto, de suas divagações inteligentes, não tem nada de buracrático no escrito. belo, belo!
não quero saber quem são, mas o que fazem essas pessoas que moram no centro do mundo.
*Por onde passam o trilhos.
Postar um comentário