quarta-feira, 11 de julho de 2007

Texto da minha amiga anônima que é a melhor pessoa para conversar sobre literatura num botequim pé sujo que eu conheço

Porque ler os clássicos

Acho que estou lendo romances demais! O pior é que essa seqüência batida de crise existencial, niilismo e melancolia já não dá caldo há muito tempo. Nunca me convenceu. Todo dia quando pego o trem pra trabalhar penso: “se liga criatura, fica esperta, a vida é muito mais rápida que você!”. Ontem ouvi uma amiga enumerar “as boas razões para ler os clássicos”. Não consegui reconhecer motivo melhor que a fruição, o encantamento. Minha amiga tem muito mais profundidade que eu, enxerga detalhes sutis, tira conclusões brilhantes. Eu normalmente recuo diante do incômodo de carregar um livro de 500 páginas para ler no trem, por isso reservo os clássicos para minha aposentadoria.
A professorinha se apressa ao ouvir a chamada de embarque do trem das 17:34. “Plataforma 12 linha M”, alguém anuncia pelos alto-falantes. Ela corre com cautela, temendo que o solado liso da sapatilha a faça escorregar no ladrilho. Por pouco não é atropelada por uma multidão afoita. Entra no vagão destinado às mulheres, porque é o primeiro e porque é um pouco mais vazio que os mistos, daí a vaga possibilidade de conseguir viajar sentada. Expectativa frustrada. As outras são sempre mais ágeis que ela. O temperamento tímido e o peso dos livros limitam seus movimentos. Suspira com desânimo e procura ajeitar-se num canto distante da porta. Ali pode se segurar e proteger-se do fluxo de passageiras que vão entrar e sair nas próximas estações (mais entrar do que sair).
Conformada em ter que passar quase uma hora sacolejando e sentindo um cheiro ruim de borracha queimada que ninguém sabe dizer de onde vem, pega um dos livros da mochila e tenta mantê-lo erguido na frente do rosto usando apenas uma das mãos (a outra está ocupada em garantir o equilíbrio de seu corpo). Faz isso muito desajeitadamente. As páginas só podem ser viradas quando o trem para nas estações, ou, a muito custo, com a ajuda do polegar. Tudo bem, o que se lê não é digerido em pouco tempo mesmo, exige respiração longa, concentração, reflexão. A cabeça da professora dói um pouco. É difícil absorver-se com todo aquele ruído, e a luz é muito fraca.
Neste momento diz para si mesma, chamando-se pelo primeiro nome, que tem que tomar o exemplo dos que encaram a vida sem choramingar. Pensa que ela parece ser a única com ar de lamúria naquele vagão. Volta atrás: “essa droga de viajem esgota qualquer cristão, mais ainda os de pouca fé”. Quando enfim a leitura “pega no tranco”, o conteúdo do livro se choca violentamente com o que acontece a sua volta. “A vida simpática de intelectuais notívagos na Paris dos anos sessenta” ou “Aventuras sexuais chamadas de experiências existenciais por uma escritora-mulher-do-sexo-feminino” têm suas frases cortadas por pedaços de conversa sobre a preguiça de fazer o jantar pro marido que não gosta de comida requentada. “Trabalhei muito hoje, por mim esquentava o arroz e fritava um ovo”. “Eu estou ensinando o fulano a cozinhar, se não aprender, que jante na casa da mãe dele”.
Do outro lado do vagão, o alvoroço em torno de uma partida de sueca. Todas as tardes a turma do carteado se reúne no mesmo lugar. No terminal ferroviário, os homens entram no vagão misto. Quando o trem para na estação seguinte, onde não tem segurança controlando, passam pro carro feminino e iniciam o jogo com as mulheres que ficaram guardando seus lugares.
Depois de tantas viagens, os palavrões não impressionam mais a professora, mas esvaziam seu interesse pelos intelectuais franceses. Ela observa as pessoas, reconhece, em palavras e gestos, semelhanças com seus alunos do ensino noturno. Olha com distanciamento. Sente-se estranha a tudo aquilo. Pensa em escrever sobre isso. “Bobagem!”, reage, “também fiz supletivo e sempre tenho preguiça de cozinhar à noite”. Assusta-se com o que a universidade lhe fez. Se tivesse parado no colegial hoje seria balconista no comércio do centro da cidade e voltaria pra casa todos os dias lendo a “Revista dos Famosos”, segundo lugar no ranking de best seller do trem, depois do “Jornal Popular” e antes da “Bíblia Sagrada”.
Então lembra do dia em que saiu de casa mais cedo e conseguiu viajar sentada, de frente pra uma senhora que lia um romance muito respeitado na literatura nacional. Um livro consagrado que já merecera uma dúzia de edições de bolso impressas em papel-jornal (baratas e levíssimas!). Por coincidência estava relendo o mesmo livro. Teve vontade de puxar assunto com sua cúmplice, saber o que ela achava da história, mas não teve coragem de interromper a leitura alheia. Segurou seu exemplar na altura dos ombros na esperança que a outra passasse os olhos pelo título em um momento de distração. Também não funcionou. Neste instante desejou livrar-se da mania feia de xeretar o que as pessoas lêem no trem, evitar enfiar a cara com indiscrição nas letras dos outros. Às vezes quase cai se contorcendo para ver as capas: romances espíritas, manuais de boa conduta em entrevistas de emprego, folhetos evangélicos, um ensaio sociológico com o carimbo da biblioteca da universidade onde estuda, “com certeza um aluno bolsista como eu...”.
Acorda de seus pensamentos quando percebe que a próxima estação é a sua, “atenção ao vão entre o trem e a plataforma!”, alerta a voz dos alto-falantes. Só então guarda o livro, desce do carro, e volta a correr pra pegar o ônibus que vai deixá-la, atrasada, na porta da escola onde trabalha tentando convencer da importância de ler os clássicos.

15 comentários:

Anônimo disse...

Genial. (L)
Hoje lembrei de vc, quando peguei o metrô pra Pavuna rezando pra ir sentada corrigindo as provas. Fui em pé até Inhaúma. E xinguei mentalmente um menino que sentou numa cadeira vaga na estação de são Cristóvão, hehe.

Adorei seu texto aqui.

Anônimo disse...

muito gde. não consigo. mas tb eu deixei de ler.

Anônimo disse...

mas insiste em repetir isso por escrito (he,he,he). não se leve tão a sério criança, a ironia é o melhor caminho para a lucidez. fique peixe!

O Nome da Rosa disse...

Ele é azedinho.

Anônimo disse...

quem é verde aqui é vc. e não sou eu que faço comentário anônimo também. fique peixe? esses seus amigos são estranhos.

Anônimo disse...

Só fico verde quando estou com raiva. Tipo incrível Hulk. rs

Vc é meu amigo tb. Está se incluindo na lista dos meus 'amigos estranhos'tb?

Anônimo disse...

claro que tô.
vai ter show do moska no final de semana que vem. 7,50 meia-entrada. bora?

Anônimo disse...

"fique peixe" é um termo pernambucano, significa "fica tranquilo, desencana, velho". só isso.

Laura Assis disse...

Meu deus do céu, GENIAL isso aí.Me sinto exatamente assim quando tô indo dar aula lá na escola do fim do mundo...sem contar que também passo vergonha tentando ver o que os outros estão lendo.=/

Mas outro dia tive uma surpresa boa: uma aluna minha estava no ônibus lendo um livro que eu tinha comentado sobre na aula anterior.Ganhei o dia.=]

Anônimo disse...

Bóooooooooora. Tô de férias. \o/

Meia entrada pra vc , né?

Professor deveria pagar 1/3 (proporcionalmente ao salário). hehe

Laura, nunca dei de cara com alunos meus lendo NADA. huahuahauha TRISTE. Mentira, UMA aluna minha é compulsiva por livros.

Anônimo disse...

sim, meia.

e nem vamos discutir isso da meia-entrada pq já virou palhaçada eheh.

professor não deveria nem pagar impostos. ao menos, professor da escola pública: cotas, cotas, cotas.

professor meu nunca ficou contente por me ver lendo alguma coisa. preconceito.

Anônimo disse...

Gostei desse texto, tem uma escrita escorreita, fluida e deixa muitas pistas no ar. Fiquei muito curioso com a história dos vagões mistos e vagões para mulheres: isso é Apartheid? É passado, é futuro? É islamismo? Há um vagão só para homens? Também gostei da referência aos intelectuais franceses dos anos 60 e à ninfomaníaca disfarçada de escritora existencialista. Evocou-me a Rive Gauche, Sartre e Beauvoir. A ninfomaníaca podia ser Catherine M ?
Sinceramente gostaria de ver a continuação desta história.

Anônimo disse...

Eu acho que ela vai continuar e te explicar as referências dela. ;]

Anônimo disse...

nunca li catherine m., e pra ser sincera não tenho a mínima curiosidade. eu estava pensando na anaïs nin, que li meio envergonhada numa das minhas viagens pro trabalho.
o vagão reservado às mulheres existe nos trens e metrôs do rio de janeiro desde o ano passado. a idéia é evitar os casos recorrentes de constrangimento nos horários de rush, quando as conduções estão muito lotadas e fica difícil manter uma distância segura dos sujeitos mal intencionados. só que não funciona muito bem. como o transporte coletivo na cidade é precário, é impossível controlar a entrada de homens durante o percurso. não existe vagão masculino, todos os outros são mistos.
a história tem continuação sim, mas eu sou muito prolixa e esse blog não é meu, não posso abusar da gentileza da minha amiga. em todo caso, muito obrigada pelos comentários generosos.
ps: pelos da laura, aí em cima, também

Anônimo disse...

Pode "abusar"!!