Ando num ritmo alucinante de trabalho, principalmente porque a distância entre a minha casa e meus locais de trabalho é deveras extensa.
Antes assim: prefiro estar atolada de trabalho do que não ter nenhum. Além dos afezeres domésticos. Essa coisa de todo dia ser dia de varrer, dobrar, arrumar, esticar, lavar, esfregar, torcer, pendurar, picar, refogar, temperar, mexer, grelhar. Todos os verbos cabem na rotina da casa.
Mas estou tão feliz de tomar as rédeas da minha vida, que não tem vida de comodidades que compense a sensação de liberdade que é ter o meu canto. Por isso que demoro 3 horas por dia indo e voltando do trabalho sem reclamar. Se é o trabalho que me possibilita pagar pela minha alforria (irônico não?), trabalhemos.
É bem verdade que me afastei dos livros e que de vez em quando folheio algum de saudade. O último foi do Thomas Mann, no trem sentido Japeri. Que contraste ler "Morte em Veneza" naquela calor, sacolejando minha barriga de seis meses ao som do atrito do trem. Me lembrei da Ive, que dizia que o ato de varrer a cozinha no decorrer da escrita da sua dissertação sobre Benjamin, a conectava com realidade e que isso era importante.
Independente da alienação que o trabalho traz, e professores trabalham cada vez mais, faço um esforço para que não mecanize meu ofício e tire algum prazer e alguma reflexão disso. E tome mais trabalho!
Por enquanto, a inquietude não deu sinais de explodir, apesar de duvidar de vez quando da escolha que fiz para a minha vida. Será que reproduzir o padrão das gerações anteriores: trabalho, casamento, filhos foi a melhor opção? No presente momento, não me arrependo das minhas escolhas, pelo contrário. Apesar da repulsa da maioria dos meus amigos balzaquianos que negam esse modelo e estendem a adolescência até onde podem. Eu sempre quis isso, sempre quis a minha família. Talvez porque nunca tenha tido isso, ou para reparar o desleixo dos meus pais para comigo e minha irmã numa época em que o casamento era o caminho "natural" da vida.
A gente se descobre muito careta. Mentira, eu sempre me soube assim. E tenho a sensação de que nada é mais valioso do que a família que eu conquistei. Troco qualquer vida glamourosa pela minha vida de tripla jornada de trabalho.
E tenho uma paz de espírito que nunca tive. Não existe espaço para a melancolia. A consciência de me saber mais uma na multidão e de que viver é isso aí. Acordar, lavar, passar, esticar, cortar, reforgar, amassar...Fiz o caminho inverso ao da Ana de Clarice e aquele homem cego que mascava chicletes no bonde me tirou num estalo de uma floresta fantástica para a segurança do lar doce lar.
Felicidade é isso aí pra mim.
terça-feira, 7 de outubro de 2008
terça-feira, 5 de agosto de 2008
Álbum de Família
O dia amanheceu solar, verde-azul pela moldura da minha janela. Ontem de madrugada, enquanto lia os trabalhos dos meus alunos sobre "A Memória de São João de Meriti", que consistia em entrevistas com moradores antigos, me emocionava, talvez pela primeira vez, com meu ofício. E senti um orgulho danado dos meus alunos.
Trabalhei tanto tempo com história oral, na faculdade, na monografia, que é através do tempo circular da memória que percebo a passagem do tempo. São as pequenas narrativas, a memória dos velhos que guarda do esquecimento imagens ignoradas pelo Poder e que suscitam, mais do que um passado acabado, a sugestão, a polifonia, a multiplicação de versões, a imprecisão.
O terreno da memória é o da dúvida, e como substrato da História, pincela a 'ciência' que estuda o passado com cores de romance policial, de poesia lírica, onde a palavra é auto-reflexiva, de nostalgia. O passado é o reino do não-dito.
Eu só gosto de Historiografia assim, quando ela é Literatura.
Trabalhei tanto tempo com história oral, na faculdade, na monografia, que é através do tempo circular da memória que percebo a passagem do tempo. São as pequenas narrativas, a memória dos velhos que guarda do esquecimento imagens ignoradas pelo Poder e que suscitam, mais do que um passado acabado, a sugestão, a polifonia, a multiplicação de versões, a imprecisão.
O terreno da memória é o da dúvida, e como substrato da História, pincela a 'ciência' que estuda o passado com cores de romance policial, de poesia lírica, onde a palavra é auto-reflexiva, de nostalgia. O passado é o reino do não-dito.
Eu só gosto de Historiografia assim, quando ela é Literatura.
sexta-feira, 23 de maio de 2008
Uma lembrança dependurada na sacada.
Tinha o chão desnudo esperando o piso frio, quando naquela tarde quente lhe passamos a vista pela primeira vez. Depois de atravessarmos a estação de trem, perambularmos por todos os prédios do lado de lá, de duas águas minerais, suarmos em bicas e recebermos vários "não temos apartamento de quarto e sala para alugar", resolvemos, por indicação de um comerciante de carros usados, entrar numa imobiliária, que ficava escondida sob uma porta de madeira de lei, num prédio comercial.
Vi uma banheira daquelas antigas, verde. Um conjugado com uma banheira verde e uma janela de madeira carcomida pelos cupins maior que o apartamento. Lembrou-me a janela da casa da minha avó, janela esta, que escancarava a casa para o mundo e o mundo entrava com a intimidade de um amante para dentro da casa. Minha avó sempre abria a janela, cantando todos os dias uma música do seu tempo de menina, fazendo com que a luz do dia nos acordasse de forma abrupta. E de repente, quem entrava silenciosa pelas frestas, arrebentava nossas retinas. A manhã nos dava um tapa na cara.
Amei a janela. Era a janela da minha infância na casa da minha avó. O proprietário quer trocar, como já trocou os tacos do chão. Não queria que trocasse, só para seguir o ritual de girar o trinco, escutar o som do atrito do ferro e aspirar à rua através daquela moldura esbranquiçada. Já pensou: acordar num sábado de manhã e fazer o movimento de abrir os braços para deixar a luz entrar? Dispenso a visão translúcida e anti-séptica do vidro das janelas de alumínio. Já me basta esta janela de cristal líquido em 14 polegadas, pela qual vos falo.
Já na minha adolescência, vovó colocou grades nas janelas de madeira e nos vitrôs, assim como passou a chave na porta da rua. Januária na janela passou a ver o mundo fatiado em retângulos, porque aquela cidadezinha de 80 mil habitantes estava ficando perigosa.
Ter uma janela dessas, numa cidade como o Rio de Janeiro, é no mínimo um ato insano, tão insano que chega a ser obsceno não se proteger no clima de insegurança e paranóia geral.
Mas, que a minha pimenteira beberrona ficaria linda no canto do parapeito da janela...Ah! Ficaria!
Vi uma banheira daquelas antigas, verde. Um conjugado com uma banheira verde e uma janela de madeira carcomida pelos cupins maior que o apartamento. Lembrou-me a janela da casa da minha avó, janela esta, que escancarava a casa para o mundo e o mundo entrava com a intimidade de um amante para dentro da casa. Minha avó sempre abria a janela, cantando todos os dias uma música do seu tempo de menina, fazendo com que a luz do dia nos acordasse de forma abrupta. E de repente, quem entrava silenciosa pelas frestas, arrebentava nossas retinas. A manhã nos dava um tapa na cara.
Amei a janela. Era a janela da minha infância na casa da minha avó. O proprietário quer trocar, como já trocou os tacos do chão. Não queria que trocasse, só para seguir o ritual de girar o trinco, escutar o som do atrito do ferro e aspirar à rua através daquela moldura esbranquiçada. Já pensou: acordar num sábado de manhã e fazer o movimento de abrir os braços para deixar a luz entrar? Dispenso a visão translúcida e anti-séptica do vidro das janelas de alumínio. Já me basta esta janela de cristal líquido em 14 polegadas, pela qual vos falo.
Já na minha adolescência, vovó colocou grades nas janelas de madeira e nos vitrôs, assim como passou a chave na porta da rua. Januária na janela passou a ver o mundo fatiado em retângulos, porque aquela cidadezinha de 80 mil habitantes estava ficando perigosa.
Ter uma janela dessas, numa cidade como o Rio de Janeiro, é no mínimo um ato insano, tão insano que chega a ser obsceno não se proteger no clima de insegurança e paranóia geral.
Mas, que a minha pimenteira beberrona ficaria linda no canto do parapeito da janela...Ah! Ficaria!
quinta-feira, 15 de maio de 2008
É só a saudade que está pertubando meu sono. Diga lá, coração. Diga lá sua pele quente na minha pele. Diga lá seus pêlos, suas mãos, sua língua e um beijo teu na minha nuca. Eu me apaixonei por você depois daquele beijo na nuca. Foi tão fatal que deve ter atingindo meu cerebelo. Foi um beijo no cerebelo. Eu lembro. Aliás, eu vivo de lembranças. Ou revivo de saudades. Você me puxou para perto da sua boca, levantou os meus cabelos e revelou meu pescoço. Como é que eu posso esquecer disso? Deslocou a minha cabeça. Quebrou o meu pescoço como se degolasse uma galinha. E o meu corpo saiu andando, sem cabeça. Perdida por aí. Foi um beijo de amor, um beijo de morte, um beijo quente na nuca.
Texto retirado dos rascunhos de "O Nome da Rosa", escrito em 18/05/07
Obs. Aí Th, um velho texto inédito.
Texto retirado dos rascunhos de "O Nome da Rosa", escrito em 18/05/07
Obs. Aí Th, um velho texto inédito.
segunda-feira, 21 de abril de 2008
Fala Meriti!
Saens Peña - Pavuna. Tabuleiros com cenouras em bacias azuis, tomates em bacias verdes, morangos em bacias amarelas, sardinhas-prateadas, namorados-rosados, moleque-piranha e uma jaula com 4 bodes dentro. Vertiginosamente, é isso que eu vejo andando apressada pela feirinha da Pavuna. Lá onde "a dona cebola que estava envocada deu uma tapa no seu pimentão". A feirinha esbanja cores e cheiros em contraste com o cinza do asfalto e na falta do verde-azul das árvores e do mar da zona sul. No meu caminho, sempre imagino as barracas de frutas, verduras e peixes, como contínuo cromático congelado. Se pudessem capturar as cores com os cheiros seria uma experiência estética e tanto. O que eu não vejo, sei que existe porque farejo.
Pergunto onde pego o ônibus para a Vila União, atravesso o centro de São João, chego na praça da Matriz que fervilha de gente nos pontos de ônibus, camelôs que vendem todos os sabores do biscoito fofura, todos os tipos de bala, todos os tipos de refrigerantes genéricos, além da coca-cola e pergunto de novo para um fiscal que está suando em bicas: "Onde pego o ônibus pro Ciep Jean-Batiste Debret?" Dou nome e sobrenome à escola. O fiscal responde: "Ah! O Ciep 179...Você pega o 103 pra Nilópolis."Dentro do ônibus pergunto ao trocador: "Falta muito?"
O Ciep tem nome de número e paredes azuis e vazadas. Aspiro poeira do caminhão que passa, vejo uma carroça logo a seguir. O ar de São João é carregado de uma poeira fina, que não é necessariamente do asfalto, parece terra.Essa escola me lembrou em alguma medida, uma escola que ficava na zona rural de Cruzeiro, na qual eu fazia estágio nos meus tempos de normalista. O ar tinha essa mesma consistência e coloração amarronzada. O ar tem gosto de terra. Terra seca. O bairro, onde se localiza a escola, fica na periferia de São joão e mistura elementos de subúrbio, favela, assim como, de uma cidade do interior. É um bairro pobre, com casas inacabadas, antigas e com um colorido desbotado. Como se a tinta das peredes tivesse dissolvido depois de tanta chuva ou como se fosse aplicada diretamente sobre o cal. As casas têm cores de giz. As ruas são asfaltadas, mas poeirentas. Imagino que aquela terra toda tenha origem nas ruas próximas onde o asfalto ainda não chegou. Meninos soltam pipas e jogam bola nas ruas paralelas à escola. Outros estudantes transitam na calçada indo em direção à escola de enfermagem que fica a dois quarteirões do ciep onde leciono.
Cada quarteirão tem no mínimo 2 botequins que nunca vi vazios no meu dia de trabalho. O porteiro da escola abre o portão, me cumprimenta e subo a rampa do Ciep até o terceiro andar. O chão é cinza, cor-de-grafite. Segue um barulho infernal, que ainda não consigo localizar com precisão de onde vem. As vozes ultrapassam as paredes brancas das salas, se misturam no corredor e chegam aos meus ouvidos.604. Abro a porta azul-marinho-acrílico. Entro: "Eu sou a nova professora de História de vocês".
+ Texto originalmente publicado no blog "O nome da Rosa" em 07 de Junho de 2007 sob o título:"Techinicolor".
Muita coisa mudou na minha forma de olhar o trajeto de casa até o trabalho. E o encantamento que sentia através do olhar distanciado, estrangeiro vem se transformando num olhar minuncioso, intimo ou, muitas vezes, pelo avesso: pela pressa, pela frequência, pelo cansaço, tenho olhado Meriti com indiferença.
A vida segue linear sobre os trilhos do metrô e com a precisão de um relógio atômico, em 45 minutos chego ao meu destino. Os gestos se dão de forma regular e constante acompanhando o tique-taque dos ponteiros.
A intimidade criada a partir da repetição dos dias, conteúdos e da paisagem suburbana congelada e inodora através dos vidros do metrô transforma o trabalho, muitas vezes, numa linha de produção e como um operário que prevê seu dia: bato o ponto.
No entanto, o cotidiano também traz um sentimento de pertencimento, de comunidade. Me vejo na fronteira, me equilibrando numa tênue linha entre a descoberta e a indiferença acerca da sub urbe.
A Pavuna é a última estação do metrô, é o fim da cidade, da urbe. Lá onde o Rio Cidade não chegou, onde a ruas se assemelham ao solo lunar e a sujeira carrega o rio Meriti. E passo todos os dias pelas barracas de fruta, pelos gatos nas barracas de peixe que atraem moscas varejeiras, pelo asfalto salpicado de escamas, pelos tomates apodrecidos, pelos ratos, pelo calor infernal, pelo burburinho dos passantes e pela fumaça negra expelida dos canos dos ônibus e kombis que saem do terminal rodoviário.
O contraste desse quadro com as imagens da minha infância e adolescência nas ruas limpas, amplas, asfaltadas e arborizadas da zona sul é um choque elétrico na espinha. Mais do que um exercício antropológico, onde me coloco no lugar do outro, me dói, todos os dias, chegar ao trabalho.
Me dói pela repulsa a tanta pobreza, por tanto descaso. Sigo. Engulo a poeira do ar e vou em frente, anestesiada.
É o abismo entre o trem e a plataforma. Quando chego em casa, é como se o metrô tivesse me teletransportado para outra dimensão de uma mesma cidade. A gente entra, senta, segue contínuo e quando sai do vagão está em outro lugar, completamente díspare.
A brutalidade da pobreza se contrapõe a suavidade dos meus alunos e alunas sob o uniforme azul e branco, os sapatos boneca e os trabalhos de escola. Alunos que não têm aquela arrogância característica das classes altas, de quem nasceu e foi educado para mandar: a classe patronal.
De todos os meus alunos, em todas as escolas em que trabalho, são com os alunos de Meriti que estabeleço laços de afeto, que me identifico.
Quase que norteada por um sentimento cristão, é por eles que eu sigo sem me importar que tenha deixado meus mortos de lado, apesar da saudade dos livros.
Pergunto onde pego o ônibus para a Vila União, atravesso o centro de São João, chego na praça da Matriz que fervilha de gente nos pontos de ônibus, camelôs que vendem todos os sabores do biscoito fofura, todos os tipos de bala, todos os tipos de refrigerantes genéricos, além da coca-cola e pergunto de novo para um fiscal que está suando em bicas: "Onde pego o ônibus pro Ciep Jean-Batiste Debret?" Dou nome e sobrenome à escola. O fiscal responde: "Ah! O Ciep 179...Você pega o 103 pra Nilópolis."Dentro do ônibus pergunto ao trocador: "Falta muito?"
O Ciep tem nome de número e paredes azuis e vazadas. Aspiro poeira do caminhão que passa, vejo uma carroça logo a seguir. O ar de São João é carregado de uma poeira fina, que não é necessariamente do asfalto, parece terra.Essa escola me lembrou em alguma medida, uma escola que ficava na zona rural de Cruzeiro, na qual eu fazia estágio nos meus tempos de normalista. O ar tinha essa mesma consistência e coloração amarronzada. O ar tem gosto de terra. Terra seca. O bairro, onde se localiza a escola, fica na periferia de São joão e mistura elementos de subúrbio, favela, assim como, de uma cidade do interior. É um bairro pobre, com casas inacabadas, antigas e com um colorido desbotado. Como se a tinta das peredes tivesse dissolvido depois de tanta chuva ou como se fosse aplicada diretamente sobre o cal. As casas têm cores de giz. As ruas são asfaltadas, mas poeirentas. Imagino que aquela terra toda tenha origem nas ruas próximas onde o asfalto ainda não chegou. Meninos soltam pipas e jogam bola nas ruas paralelas à escola. Outros estudantes transitam na calçada indo em direção à escola de enfermagem que fica a dois quarteirões do ciep onde leciono.
Cada quarteirão tem no mínimo 2 botequins que nunca vi vazios no meu dia de trabalho. O porteiro da escola abre o portão, me cumprimenta e subo a rampa do Ciep até o terceiro andar. O chão é cinza, cor-de-grafite. Segue um barulho infernal, que ainda não consigo localizar com precisão de onde vem. As vozes ultrapassam as paredes brancas das salas, se misturam no corredor e chegam aos meus ouvidos.604. Abro a porta azul-marinho-acrílico. Entro: "Eu sou a nova professora de História de vocês".
+ Texto originalmente publicado no blog "O nome da Rosa" em 07 de Junho de 2007 sob o título:"Techinicolor".
Muita coisa mudou na minha forma de olhar o trajeto de casa até o trabalho. E o encantamento que sentia através do olhar distanciado, estrangeiro vem se transformando num olhar minuncioso, intimo ou, muitas vezes, pelo avesso: pela pressa, pela frequência, pelo cansaço, tenho olhado Meriti com indiferença.
A vida segue linear sobre os trilhos do metrô e com a precisão de um relógio atômico, em 45 minutos chego ao meu destino. Os gestos se dão de forma regular e constante acompanhando o tique-taque dos ponteiros.
A intimidade criada a partir da repetição dos dias, conteúdos e da paisagem suburbana congelada e inodora através dos vidros do metrô transforma o trabalho, muitas vezes, numa linha de produção e como um operário que prevê seu dia: bato o ponto.
No entanto, o cotidiano também traz um sentimento de pertencimento, de comunidade. Me vejo na fronteira, me equilibrando numa tênue linha entre a descoberta e a indiferença acerca da sub urbe.
A Pavuna é a última estação do metrô, é o fim da cidade, da urbe. Lá onde o Rio Cidade não chegou, onde a ruas se assemelham ao solo lunar e a sujeira carrega o rio Meriti. E passo todos os dias pelas barracas de fruta, pelos gatos nas barracas de peixe que atraem moscas varejeiras, pelo asfalto salpicado de escamas, pelos tomates apodrecidos, pelos ratos, pelo calor infernal, pelo burburinho dos passantes e pela fumaça negra expelida dos canos dos ônibus e kombis que saem do terminal rodoviário.
O contraste desse quadro com as imagens da minha infância e adolescência nas ruas limpas, amplas, asfaltadas e arborizadas da zona sul é um choque elétrico na espinha. Mais do que um exercício antropológico, onde me coloco no lugar do outro, me dói, todos os dias, chegar ao trabalho.
Me dói pela repulsa a tanta pobreza, por tanto descaso. Sigo. Engulo a poeira do ar e vou em frente, anestesiada.
É o abismo entre o trem e a plataforma. Quando chego em casa, é como se o metrô tivesse me teletransportado para outra dimensão de uma mesma cidade. A gente entra, senta, segue contínuo e quando sai do vagão está em outro lugar, completamente díspare.
A brutalidade da pobreza se contrapõe a suavidade dos meus alunos e alunas sob o uniforme azul e branco, os sapatos boneca e os trabalhos de escola. Alunos que não têm aquela arrogância característica das classes altas, de quem nasceu e foi educado para mandar: a classe patronal.
De todos os meus alunos, em todas as escolas em que trabalho, são com os alunos de Meriti que estabeleço laços de afeto, que me identifico.
Quase que norteada por um sentimento cristão, é por eles que eu sigo sem me importar que tenha deixado meus mortos de lado, apesar da saudade dos livros.
sexta-feira, 25 de janeiro de 2008
sábado, 5 de janeiro de 2008
Afonso Henriques Lima Barreto
Ando tonta, nauseada, enjoada. Tropeço. Ando devagar porque me sinto uma barata intoxicada. Gosto de morte na boca. Me desculpe este texto em primeira pessoa. Esse tom confessional. Falta um cigarro, falta ser suave. Falta fumaça para que eu retome o fôlego para escrever. Vejo meus livros e tenho vontade de chorar compulsivamente. Nada me traz mais tristeza do que a sensação de que não os alcanço. Cansada.
Não sei escrever e gaguejo enquanto escrevo este texto. Queria ser menos roja que Clarice, ser lavanda. Ganhei Rayuela em espanhol, La liebre también. É um luxo, não? Toco, miro as cores, a textura do papel, a tipografia, o cheiro de celulose e aspiro os ácaros. Sufoco. Vomito todas as palavras que ingeri, soluço vírgulas, pontos e travessões e de vez em quando arroto um parágrafo inteiro.
Meu estômago dói, minha cabeça dói. Nada sai suave e ler já não consigo, escrever já não consigo. As letras caem violentamente uma a uma. Sonhar já não sei, desaprendi. Me pergunta se eu estou feliz. "Você está feliz?" "Estou feliz".
Quanto mais eu vivo, menos escrevo. Sinto saudade dos meus mortos. Não sou mais leitora. Me maltratam meus mortos, me sinto indigna e tão moribunda que minhas palavras saem assim mendicantes. Sem elegância. Não sou mais leitora, não escrevo mais. Não me peça para apurar nada. Eu só vomito palavras e choro enquanto escuto o estalar das teclas de plástico. Me sinto tão indigna das palavras que não abro um livro sequer há um mês. A idéia de tocá-los me deixa aos prantos. Isso tudo é uma bobagem para quem vê literatura como entretenimento. Eu queria um cigarro agora. Enquanto escrevo, transbordo pelas mãos, pelos olhos, pelo nariz. Coloco o dedo na minha ferida. E largar meu vício pelos livros é mais doloroso que largar 17 anos de tabagismo. Tenho medo de esquecê-los. Tenho medo da ignorância, do senso-comum, da superfície, da literatura como entretenimento. Seria tudo tão mais fácil, se num dia de sol, eu abrisse La liebre e desgustasse seu espanhol despretensiosamente.
Um dia tive uma crise de choro no metrô. Olhava para o vidro enegrecido e tive um impulso de perguntar para a moça que estava sentada ao meu lado se ela queria meu Faulkner de presente. Não tive coragem, fiquei na vontade. Não abri mais o Faulkner.
Para Lima Barreto, TH e Huguito.
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