quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Verbalizou

Avistou, se aproximou, reparou, pensou, decidiu, avançou, se conteve, parou, averigou, contrabalançou, abriu, conferiu, contou, retirou, entrou, entregou, pediu, aguardou, pegou, agradeceu, sorriu, guardou, saiu, andou, telefonou, saudou, falou, marcou, se despediu, chamou, se sentou, informou, viu, apreciou, cochilou, acordou, pagou, saltou, andou, apertou, esperou, esperou, bufou, entrou, apertou, subiu, saiu, caminhou, abriu, pegou, escolheu, enfiou, adentrou, fechou, desapateou, colocou, percorreu, se despiu, ligou, se banhou, se enxugou, deitou, adormeceu, sonhou, se assustou, despertou, ouviu, se levantou, olhou, abriu, sorriu, retribuiu, beijou, abraçou, se achegou, convidou, apontou, ansiou, relaxou, beijou, se esfregou, retirou, acariciou, arranhou, beijou, retirou, sorriu, abraçou, beijou, se afastou, sorriu, retirou, retirou, guiou, se deitou, acariciou, se avolumou, percorreu, beijou, percorreu, linguou, sorriu, virou, mordeu, estapeou, virou, sorriu, trouxe, fechou, se entregou, se unificou, ascendeu, se morreu, se eternizou, se esfacelou, se liquificou, se largou, sorriu, beijou, acarinhou, ficou, encostou, escutou, riu, comentou, acarinhou, se perdeu, riu, implorou, fechou, se extasiou, agradeceu, gargalhou, se levantou, abriu, pegou, despejou, dividiu, repartiu, aspirou, soprou, guardou, sorriu, andou, abriu, desgavetou, pegou, foi, pagou, beijou, acompanhou, se despediu, fechou, retornou, desabou, imaginou, se ergueu, procurou, se vestiu, bateu, saiu, recordou.

Texto de Th
Abriu o diafragma, capturou lentamente a luz. Então vieram as cores das coisas: aquele azul-marinho descacado da porta da cozinha, su pelo rubio, su cuerpo gris.

Coloca um pouco de cor nas bochechas, eu disse. Você está muito pálida, parece um espectro.
Ela levantou do rodapé da varanda e entrou no quarto. Saiu vestida de negro e tinha um delicado arranjo de rosas vermelhas adornando os cachos no alto da cabeça.

Por um momento, ela se virou para a porta do quintal e a claridade atravessou sua retina, dando um aspecto translúcido aos olhos azuis. Thereza tamborilava os dedos aflitos no portal de madeira carcomido. Acendeu um cigarro e se sentou no rodapé. Qué vamos hacer, perguntei a ela.

Nos conformamos en respirar. Caminemos, dijo ella. Sigamos para la muerte y vivamos mientras tegamos vida para vivir.

Enlacei sua cintura e encaminhei Thereza até o carro, ouvindo o estalar de seu salto contra o piso de tábuas corridas. Quem sabe os mortos no porão haverão de nos seguir novamente.

Círculos de Existência

Andei em círculos como se andasse em círculos, mas os círculos serviram apenas para dissimular um andar retilíneo e estorvante.

*Texto de TH.

sábado, 20 de outubro de 2007

Engov

Certa vez – era inverno, me lembro, mês de julho, fazia frio –, acordei no meio da noite com uma vertigem estranha. Na verdade fui acordado por ela. Um movimento brusco e involuntário do corpo que tropeça na culpa; uma sensação de quase queda e a entrada súbita no estado de alerta. Estendi a mão até o interruptor da luminária. Despertar repentinamente no meio do breu me deixa um pouco assustado. Girei o botão de um lado a outro, uma, duas, três vezes. Nada de luz. Puxei o fio com alguma força pra me certificar de que a tomada estava plugada. Merda! Esqueci de pagar a conta novamente! Pouco tempo depois, um bolo de ar ácido teimava em passear entre a boca do meu estômago e a minha garganta.
Rolei na cama por algumas horas procurando a melhor posição pra adormecer novamente; tanta coisa pra fazer logo mais, melhor não me render à vigília. Deita de bruços, aperta o travesseiro contra a barriga, tenta pensar em outra coisa, imagina um campo florido, crianças brincando, vai passar, vai passar... amanheceu. O foda é que acontece sempre. Cortarem a luz? Não, com isso já estou mais que habituado! Quando a vista acostuma, eu me viro relativamente bem no escuro. Pior é agüentar as dores de estômago, o ranço de amargura na boca e o leve enjôo que me perseguem até que a culpa se dissipe!
Em outubro passado esqueci o aniversário de uma amiga. Não se trata de qualquer pessoa, mas de alguém bastante próximo. Foi num fim-de-semana, fiquei a tarde inteira enterrado no sofá da sala, trocando compulsivamente o canal da televisão, com pouco ou nenhum interesse pelo que acontecia no vídeo. Só levantei pra jantar, tomei um banho longo, me deitei na cama pra ler e dormi. Três e meia da manhã: caralho, o aniversário da Flávia! Todo esse tempo ocioso, o telefone a menos de dois metros das minhas mãos e nem uma demonstração de afeto, uma palavrinha de consideração que fosse! Como fui relapso, isso é imperdoável! Então foram bem merecidas as crises de tontura e às cinco horas de enxaqueca que me atacaram enquanto eu rascunhava um pedido de desculpas e esperava um horário razoável pra ligar.
Mas os problemas mais graves começaram mesmo há cerca de duas semanas, no exato momento em que me dei conta que tinha perdido um livro da Biblioteca Municipal. Eu já era mal visto na instituição por conta de gafes anteriores (crises de tosse inoportunas, um rabisco distraído no ensaio sobre a música brasileira do Mário, o desrespeito à pressa sagrada das sextas-feiras que faz com que os funcionários me olhem feio, quando, às quinze pras cinco da tarde, peço um exemplar que está no último armazém). Pois foi justamente um destes livros que eu deixei escorregar no ônibus a caminho de casa. (Na ocasião eu andava afetado pela sonolência, que adquiri ao receber uma carta ressentida. Um amigo que mora no exterior me cobrava com dureza as respostas que eu nunca escrevi). Sentei num daqueles bancos mais altos da condução (encostado na janela e atrás do motorista, é uma mania de infância), abri o livro no colo e então só me lembro de ler a frase las costumbres, Andrée, son formas concretas del ritmo, son la cuota de ritmo que nos ayuda a vivir... Quando dei por mim estava na calçada, há duas quadras do meu prédio, já sem o livro nas mãos e sentindo uma náusea incontrolável.
Entrei na portaria suando frio. Corri até o elevador e o desgraçado tinha acabado de subir! Resolvi usar as escadas, três andares, seis lances, onde estão as chaves, bolsos da frente?, bolsos de trás?! Direto pro banheiro, cabeça no vaso sanitário, espasmos, contrações, e enfim vomito minha aflição na forma de um ninho de cabelo grosso e escuro. Confesso que fiquei impressionado! A matéria mais estranha que eu já tinha regurgitado era pedaços de uma bílis amarronzada. Normal. Acontece quando carrego na dose. Até podemos ver isso como uma espécie de expurgo, uma depuração quase saudável, afinal, é sabido que o fígado tem grande capacidade regenerativa. Mas longos fios de cabelos negros emaranhados num novelo foram mais que um expurgo, talvez um exorcismo!
Nunca gostei de vomitar. Parece uma idéia consensual, mas não é. Tem gente que gosta. Conheço quem enfie o dedo na goela pelos mais diversos motivos: pra continuar comendo, pra emagrecer ou pra se livrar da ressaca. Eu infelizmente não tenho essa facilidade. Primeiro fico apavorado, depois sufocado, e por fim, deprimido. Imagine o quanto foi difícil passar várias vezes pela experiência de expelir uma secreção tão bizarra! Isso porque o refluxo voltava sempre que eu pensava no infeliz incidente e só me recuperei na segunda-feira à tarde, depois que pedi que um amigo de fala articulada ligasse pra biblioteca e se justificasse por mim.
A funcionária da administração nem se abalou. Segundo a interpretação do meu amigo, ela já devia ter a sentença decorada. Você deve preencher um formulário de extravio, assinar um termo de compromisso, pagar a taxa de reposição. Seus direitos de uso dos serviços da biblioteca ficarão suspensos pelo prazo de um mês. Acontece que eu não fui o primeiro nem o último a cometer esse tipo de deslize. Mesmo assim fiquei com a sensação de que aquela baixinha mal humorada já estava esperando pelo meu lapso. Vindo de mim, tal vício parece mais que previsível.
Hoje posso me dizer aliviado. Voltei à rotina tranqüila das taquicardias, breves paralisias, falta de ar e pequenos tremores que me tomam sempre que perco as chaves, deixo de cumprir um prazo, cometo erros ortográficos nas cartas ou me atraso pra sessão de cinema. Normal. Acontece quando me descuido.

**Texto da Anna.

domingo, 14 de outubro de 2007

Vidro no ventilador

I

São quase duas da manhã, procura uma cabeça rosa por entre as pretas. Não sobrou nenhum fósforo para riscar. Segue com o cigarro dependurado no canto da boca protelando a primeira tragada de tanta preguiça para procurar um isqueiro, outra caixa de fósforos e desandou este texto.

Existe alguma coisa estranha no ar, talvez a falta de comunicação ou a comunicação castrada que nós temos, incompleta. Me pergunto: que comunicação é completa? Clausura do pensamento na palavra.

E quando sexo já não basta tanto? E quando queria conversar sobre as coisas da vida numa profundidade em que você se afogaria? E que me irrita você não crescer apesar de te gostar assim tão menino.
Ela tinha que pintar a cabeça de vermelho: corrigir as provas. Dormiu o dia inteiro. E de repente essa mania de se afastar das pessoas das quais sente saudade.

Odeio segundas-feiras. Está tudo com gosto de cinza. Está tudo "demorando em ser tão ruim".

Preciso corrigir as provas, estudar, pintar os cabelos, fazer as unhas, ler quem eu gosto e beber chopp preto. E a vida é isso aí? Coca-cola é isso aí.

Ontem você águou duas vezes, assim como quem tem fome. Te deixei salivando até que me abocanhasse. Te amo, ele me disse. Te amo.

Disse que eu discuto colocando o dedo na cara. E que essa mania, eu peguei de um tal fulano que eu namorei. Ele disse: você é orgulhosinha.

E você é egoísta. Eu disse. Ele está pesado e eu ficando velha.

Rio, 30 de Setembro de 2007.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Fragata furada

saberia algum dia a existência de um lugar quando se desconhece até o tamanho da própria cara?, eu que retornei tantas vezes àquele porto construído de frente para um tanque, porque não se pode chamar de outra coisa um recipiente cheio de água para simular o mar, a devastação de edifícios antigos que impediam a miragem de um horizonte, o pier onde nos sentamos para rir daquela paisagem, das famílias inteiras que saíam das províncias para admirar a grande obra do governo, a comprovação do desenvolvimento do país, uma nação sem saída para o mar está destinada a se consumir por dentro, impedida de avançar, travar contato com outros povos, de percorrer mundos novos, ir além de si mesma, você que nunca quis entrar naquelas sucatas transformadas em naves, sempre abertas à visitação, fantasias de marinheiro acenando do convés, a sirene das seis horas, deprimente, não valia a pena, suas palavras, que se tornaram minhas, como tantas outras, o seu gosto pelos barcos, a habilidade com que os fazia com qualquer papel, folhas de revista, panfletos, o caderno cultural do jornal, porque tanta inteligência não pode afundar, de qualquer maneira, você já não estava ali encostada no parapeito, absorvida pela sinuosidade das águas, o ruído quase secreto do motor no fundo do mar, à espera de uma onda bravia que afogasse a cidade inteira, todas as vozes e desejos que dela emanavam, nada mais prestava, sua face contraída, choro interrompido, as sucatas navegando pelas bordas do tanque, o resgate de um barco encalhado no meio do mar, pescadores que se despediam com as redes vazias, a tempestade que cismava de ignorar os prognósticos meteorológicos, tudo isso te parecia excessivo, uma encenação rude da ubíqüa vontade de partir, e, agora, eu pensava que você tem razão, ao ter avistado seu romance predileto sujo de óleo, à deriva, na água gris, à frente de outros objetos lançados, uma competição informal, no qual o vencedor é o que se perde mais rápido, se converte no indefinido, o romance que você relia ao se sentir distraída, ausente, um rasgo de angústia como companhia, o romance de páginas soltas, sem numeração, personagens pelos quais você nos identificava, devido à impossibilidade de ir, como se as fronteiras fossem cercadas pelo tanque, e o romance, a fragata, única embarcação capaz de suportar os infortúnios do trajeto, já não somos os que ficam, mas os personagens que escaparam, sacrifício necessário, doação inevitável, estranho silêncio lutuoso, abafado pela tormenta, nesse dia finalmente choveu, o guarda-chuva escondido em algum cômodo inexplorado da casa, o mar se entregou ao dilúvio, rompeu com os limites do tanque, se acabou e eu não estava contente, não encontraria ela, o desajuste do encontro, precipíome, e o que se vê é isso encurvado na margem, as ondulações do rosto no reflexo do rio são rétidas e cristalinas, a alguns passos, distância infinita, escorre entre a ilha e a porção de terra, homem que não desagua, memórias misturadas aos resíduos apodrecidos na areia, mas eram os músculos que rangem à oscilação dos estilhaços ao se mexer daquilo, o relógio antecipou o tempo...

*Texto de TH.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Decerto, a gente se conhece no cheiro

Despertou. O enquadramento da cabeça lhe parecia turvo, defeituoso. Farejou como fazem os bichos e os recém-nascidos: afundou o nariz nos seus cachos e lhe deu um beijo na nuca. Acorda, meu bem.

Tateou. Estava vermelho sob a velha camisa de algodão: ombro, costas, peito, barriga. Acorda meu bem.

Sofria de amor feliz, como se sua pele rememorasse em meio ao calor, a sensação de frio que sentira durante anos.

Às vezes, o via como um corpo estranho ao qual abraçava e enchia de beijos e pensava no quanto esperara por aquele estrangeiro de cheiro familiar. Contrariando seu temperamento revolto e sua recusa inicial, ela teceu, pacientemente, um contexto no qual a palavra deixara de ser muro para tornar-se ponte, atenuando a precária comunicação.

Num movimento que buscava romper a alteridade, ela retrocedia às suas besteiras de menina para progredir no entendimento. No intuito de diminuir a assimetria, seu pensamento ganhou forma, peso, volume e memória: concreto.

Levantou apressada, ligou a cafeteira, encheu duas canecas com café incorpado e quente desses que soltam o intestino e trazem esquecimento, abriu o chuveiro e enquanto sentia a pressão da água sobre seus frágeis ombros, tomava coragem para encarar o mundo porta a fora de seu apartamento. Ela não cabia naquele breve dia de 24 horas.

Coloca a roupa meu bem.

Sem tempo de digerir as lembranças do aroma da primeira fornalha de pão, ela lhe deu um beijo de partida, desceu a escadaria e já encoberta pela escuridão, ainda tinha seu cheiro entranhado nas narinas.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Literatura de viagem (texto da Anna)

(Primeira Estação)

E eu que acreditei que trabalhar no ensino público era minha grande missão neste mundo! Agora, depois de cinco conduções no trajeto de ida e volta para a escola, respiro devagar para minha vontade política não escapulir pelo nariz. Como a obrigação revolucionária acabou virando meio de sobrevivência, crio algumas formas de distração, não tenho alternativa no momento. No ônibus ou no trem, muitas vezes apelo para uma latinha de cerveja, que além de aliviar o calor adormece o corpo e abranda os pensamentos, e sempre que possível procuro ler pra não sentir o tempo de vida que perco me arrastando ou sendo arrastada até a periferia da cidade no horário do rush.

No início cheguei a me deter naquilo que diziam que como aspirante a intelectual era vergonhoso eu nunca ter lido. Esperava cobrir meus débitos de leitura, corrigir minhas falhas de formação. Com o tempo fui percebendo que a melhor opção era qualquer história que conseguisse não me provocar dor de cabeça. Seleciono com cuidado os textos que vão me ocupar: não muito densos ou herméticos, mas também não tão frívolos (melhor evitar contrastes radicais com o clima da condução, assim eu penso).

Há pouco iniciei a leitura de um romance que julguei adequado às minhas viagens de trem para o trabalho. Resolvi carregar o sarcasmo do autor na mochila. Encostada no fundo do último vagão, apoiei o braço esquerdo na lixeira de arame que fica presa à parede e embarquei na história tentando encurtar meu longo trajeto diário.
Só que, nesta ocasião, a viagem estava particularmente insuportável. Às cinco e meia da tarde do horário de verão o sol ainda frita minha moleira e o calor sufoca a mim e ao resto da plebe que viaja engalfinhada num vagão de trem com portas travadas e janelas estreitas. As pessoas que lotam a condução neste horário estão voltando pra casa, cansadas, depois de uma jornada de trabalho duro. Mesmo considerando minha condição privilegiada, por não ter acordado às cinco da manhã e por já estar alimentada e de banho tomado, confesso que naquela quarta-feira de fevereiro eu estava a ponto de me jogar nos trilhos, com mochila, livro e tudo.
Ao meu lado um homem alto e gordo transpirava aos pingos, ainda assim conseguia cochilar, de pé, sustentado por uma barra de apoio. Eu mesma sentia meu suor escorrer pelas costas e molhar a camiseta, que agora estava grudada no corpo e melada da fuligem do trem. Mais à frente alguns rapazes falavam alto e faziam piadas enquanto tentavam destravar uma das portas pra se aliviarem com o vento que corria do lado de fora. Eu já me afligi bastante com esse tipo de brincadeira, achava um absurdo que as pessoas arriscassem a vida desse jeito, se um sujeito desses cai, morre na hora, acontece com freqüência. Hoje sou capaz de entender que se amontoar no caixote de lata numa tarde tão abafada é uma empreitada sobre-humana, e fico é com inveja da ousadia deles.

O problema é que desde que a empresa ferroviária foi privatizada colocaram seguranças nas estações pra reprimir a “imprudência” dos passageiros. Já vi, mais de uma vez, trabalhador tomar porrada de cassetete com o trem em movimento e ser obrigado, pelo susto e pela dor, a largar a porta automática que se fecha por pressão. Dá pra ouvir o estalo de osso trincando, TAC!, depois, as gargalhadas e a zombaria do povo dentro do vagão. É a Rede Ferroviária zelando pelo bem estar de seus clientes e pela preservação de sua propriedade. Se tiver que pagar indenização por todo pé-rapado que se acidenta a empresa vai à falência, parece justo que se preocupem.

Bom, ninguém caiu nem apanhou no dia mais quente do ano. Dementes, suportávamos uma hora de enfadonha tortura. Cá no meu canto eu teimava em me esquivar da experiência me refugiando num texto qualquer. Também pode ter sido alguma obra crucial, uma dessas que descrevem com rigor ou escárnio a vida dura ou a ironia nossa de cada dia. No fim das contas não importam quais os livros, a história vale para entender que, um pouco intencionalmente, fui permitindo que o pequeno acúmulo de leitura formasse uma lente espessa sobre meus olhos. Ainda não sou capaz de avaliar o grau de distorção atingido aqui desta perspectiva, mas não há dúvida de que já há algum tempo me deixo levar por uma espécie de existência mediada.

Também não é recente o conflito intelectual gerado pela tensão entre as letras e a vida. Quantos já não protestaram contra a inclinação banal de acomodar a realidade nos livros! Uma operação mais bem-sucedida é a de tomar a leitura como complemento da experiência, como forma de dar sentido ao vivido, meio de atribuir caráter à matéria. Ou ainda buscar nas obras resquícios de existência. O registro preservado das experimentações alheias. A inscrição de algumas das muitas ações possíveis. No meu caso a propensão tem sido a de me perder no refúgio e me consumir na imobilidade.
Mas ainda posso crer que as viagens de volta para a baixa urbe têm força para me chacoalhar o juízo e me restituir ao movimento. É como se esse deslocamento no sentido contrário ao que eu segui quando saí da periferia para ir à universidade me colocasse novamente em estado de trânsito. Volto para casa consideravelmente transfigurada, com alguns livros na bagagem e a sensação de que já não caibo no lugar que por anos insisti em afirmar como meu. Está certo que eu também nunca me acomodei por completo dentro do que eu considerava o fora. Acabei me convencendo de que minha ventura é dizer respeito à estrada de ferro.

terça-feira, 31 de julho de 2007

CIGARRO+MÁQUINA DE ESCREVER

procurou na mochila, na gaveta da cômoda, vasculhou a sala, o corredor, foi encontrar na geladeira o maço: vazio. a namorada o esperava no banho enquanto a porta lhe atraía, fundia no olhar o escape.

malmequer-bemequer-malmequer-bememerda de isqueiro, falhar logo agora, assim mesmo que ele não vem, que demora, o chuveiro aberto, a água fria que espanta o corpo, essa dor logo agora, respiração suspensa, bemebemeb.

os dedos ainda enrugados, a toalha enrolada no corpo, um último malboro vermelho pendurado na boca, graças ao velho hábito providencial de guardar três por maço, interrompendo a ansiedade imposta pela companhia da máquina de escrever na madrugada.

taquetaque: o inverno que lhe cobria o espírito era uma metáfora detestável, apesar de defini-lo com precisão, acostumado que ficou à rigidez lançada pelas palavras sobre si taquetaque: deixou-se levar por imagens que não eram pensamentos, uma adormência emergia, como escrever de olhos abertos no escuro taquetaque: introspecção ininterrupta, taquetaque: o sono e o fim da folha - isolamento compartilhado com ninguém, real.

tenho pressa no amor, não consigo comunhar comigo mesma, e assim não tenho tempo para quem quer que seja, que apareça de relance sem mudar nada. o malboro vermelho ainda não aceso descansa no cinzeiro. a vida se volta contra, inflige o mais pesar dos castigos se dela hesitamos em algum ponto, ou cremos inocentes que se pode seguir sem. o mesmo cheiro está no meu nariz, de corpo, de homem que não se mostra, decide por seu destino segundo antes e age como se soubera sempre de tudo antecipado, sua vacilação é apenas incremento, sua parcela de contribuição à coisa. eu o sentia tão perto que seu odor, agora, me sufocava, obrigando a me levantar, ir à janela acender o cigarro. a fumaça dissipou o cheiro e pude respirar novamente.

abriu a cortina do box: ela estava sentada no chão enquanto um filete dágua escorria do chuveiro: mais do que prostrada ali, reparou que suas mãos seguravam um isqueiro e murmurava num dialeto próprio: ela nem tinha notado sua presença, contrapondo tanta dedicação e fidelidade: era invisível aos olhos dos outros, menos aos dela, até esse momento

taquetaque: a porta ficou entreaberta, a luz das escadas ainda acesa, a sonoridade do boa-noite do porteiro se esvaindo, a marca invisível estampada na calçada, a funcionária da farmácia bradando com indignação, onde já se viu? o cara do bar sem troco, quando finalmente a chinesa, dona da pastelaria, compreende os gestos desesperados e lhe vende um avulso do próprio maço, mas no tëñö fogu, no tëñö fogu.

o telefone tá tocando, mas que diabos, quem ligaria? a essa hora? se for você, eu não atendo, mas como adivinhar? minha mediunidade travou desde aquilo, a tragédia fatal, tava tão evidente, como não pude prever, me desculpe me desculpe. desligaram. o cigarro tá quase no fim, últimas tragadas

Ps. As recomendações: escrever tudo em letras minúsculas e com o mínimo de pontos finais possível. Ele incentivando um cadáver a escrever, além da minha compulsão por cigarros. Cigarro + máquina de escrever...E quase nasce um conto urbano. Não sei fazer ficção.
Título original: Dueto - Muito mais TH que Yo

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Sobre a morte da arte

Os dias de tristeza se foram. Aqueles anos de melancolia em que se sentia como um côncavo em preto e branco de alguém que vislumbra o tedioso ir e vir das ondas do mar. Ela não era mais uma fotografia na parede.

A claridade daquelas manhãs de cinza machucava seus olhos noturnos e cansados das letras de algum romance doce. Depois de sentir a virtualidade do gosto ancestral de terra na boca de Rebeca ou identificar-se com a tristonha cicatriz na mão de Amaranta, ela finalmente havia se libertado do vazio de experiência em que consistia o hábito de ler.

A literatura de nada lhe servia a não ser para atrofiá-la entre as duas metades do livro. E presa àquele mundo ideal, sufocava. Era Madame Bovary e do ponto em que estava, mirava seu horizonte até a página 350. O romance que falava acerca de uma leitora de romances que sonhava em ter um amante como aquele que lia nos livros. A sua consciência acerca da solitária experiência burguesa não aliviava o peso de se saber morta.

Tinha repulsa por aquele círculo de cadáveres letrados que a rodeava. Gostava de arte, mas abominava os artistas da sua geração. Era uma gente culta, sofisticada, muito branca e cheia de amores mal resolvidos que não doíam. Era de uma intensidade que soava aos seus ouvidos mais como melodia em tons pastéis do que as notas em vermelho acrílico de um Blues. O amor era útil para simular o amor: era morno, incolor, inodoro; era matéria-prima a ser lapidada.
Fora criada entre o tilintar das taças de vinho branco das vernissages e exposições do Rio de Janeiro e a simplicidade do leite gordo, espumoso e suculento do interior de São Paulo.

Estrangeira, percebia-se como um hiato entre o tempo vagaroso de seus avós e a velocidade instantânea de seu tempo.

Imaginava Madame Bovary como uma personagem criada em tempos de internet: seu amante moraria do outro lado do mundo e provavelmente não apenas o hábito da leitura seria solitário. E na era da comunicação, nada ou quase nada existia para ser dito que não fosse em primeira pessoa.
Percebia a morte de um sonho coletivo de transformação que escapasse ao movimento centrífugo da arte em torno do próprio umbigo dos artistas.

Entre os desencontros de algum romance argentino e o cinismo daqueles egos que revolucionavam como os astros a literatura, ela preferia o silêncio. Se ao menos, algum desses escritores renunciasse ao mundo como Kafka, Borges ou Lima Barreto, estaria justificada tamanha afetação ao falar sobre si ou sobre Arte.
Tudo lhe parecia uma encenação num bar-cenário: a cadeira de madeira do bar, a cerveja quente sobre a mesa de mármore, o violão a tira colo, a descontração, os dois botões abertos da camisa listrada, a fala simples e mansa, um baseado, duas carreiras, o retrato de Pixinguinha na parede,Mil Platôs amarelados embaixo do braço e entre um gole e outro a confissão sobre o sofrimento que é escrever, da sua procura por isolamento e calma e de um projeto novo e ambicioso que está desenvolvendo.

Não sabia em que genêro encaixar aquela representação anacrônica e mal-acabada do flaneur. Entre a comédia e o drama, ela desejava um só defecho: a morte do escritor. Deslizou o zíper da bolsa de couro cru introduzindo sua mão no forro marrom, retirou um canivete suíço que ganhara no natal de 1997, escutou a marcação de seu pulso e num ato involuntário, cortou a garganta de seu interlocutor num só golpe. Com o rosto rubro pelo sangue do criador, ela finalmente pôde sorrir.

domingo, 22 de julho de 2007

Publicação do texto de OTT

V

Apaga a lamparina . Junto á janela está uma poltrona de veludo coçado, amarelo-dourado, costas altas e braços arredondados. Afunda-se nela com as molas a ranger ameaçando furar o pano – bem as sentia, espetadas, ao fundo das costas. Puxou para sí uma pequena mesa retangular, com tampo de mármore e um minusculo cinzeiro de prata em cima. Alguns raios de sol penetram através de uma estreita fenda da janela entreaberta e perfuram a penumbra como um laser, fazendo bailar uma miríade de particulas de pó. Um caleidiscópio - pensou . Em criança, este fenómeno parecia-lhe coisa de cinema, uma lâmpada mágica. Nas férias de verão, na aldeia, em casa dos avós, acordava muitas vezes com esses raios de sol a bater-lhe na cara, vindos das muitas fendas existentes no telhado de telhas soltas – a todo o momento esperava ver saltar à sua volta gnomos, duendes e fadas. Uma baforada de fumo em circulos concêntricos invadiu o feixe de luz e trouxe-o à realidade – esmaga o cigarro bruscamente na prata enegrecida do cinzeiro – tem de perder este hábito de sair da cama já com o cigarro nos beiços. Levanta-se e espreguiça-se, sentindo ainda uma leve dor latejante nas têmporas. Nada que uma chávena de café quente , preto e espesso não resolva. Caminhou para a cozinha através do corredor, com os pés nus acariciando a madeira velha, rugosa, do soalho. Lá está em cima da banca, ligada á tomada, uma cafeteira de balão de vidro e filtro de papel. Não será a mesma coisa que um café expresso bem tirado, mas por agora terá que servir. Lá de fora chega-lhe um ruido urbano de carros e conversas de vendedores. Sente-se contente, chegou à cidade poucas horas antes e num golpe de sorte tinha conseguido encontrar o sítio ideal, perto daquilo que procura, ainda por cima relativamente barato. Não era pelo dinheiro, mas era necessário um lugar sossegado, perto do centro mas discreto. Fora uma coincidência extraordinária o homem do taxi, que o transportara desde o aeroporto, conhecer aquela casa e o seu proprietário , ainda mais acordado aquela hora da madrugada. Passar no bar do dono, combinar com ele e receber a chave, foi relativamente fácil, apenas lhe custou alguns gins tónico, muitos cigarros e uma grande dor de cabeça. E agora ali estava. Claro que não tinha o conforto dos muitos hoteis em que já tinha estado, era um 2º andar de uma casa velha, desconfortável e anacrónica, que parecia não ser habitada hà muitos anos. Para lá chegar era necessário subir uma escada íngreme de madeira gasta, em caracol largo, com um corrimão de madeira escura, polida, que volteava em direcção ao desconhecido. Quando a subiu a primeira vez a meio da noite, apenas com uma luz débil, amarela e suja, por um momento sentiu-se num filme do Hitchcock, Vertigo, talvez. . Mas agora parecia-lhe estranhamente familiar, uma sensação de nostalgia invadiu-o desde o primeiro momento. Enquanto saboreia o café, acompanhado de mais um cigarro, puxa a persiana emperrada e olha pela janela: lá está o rio ao fundo, seguindo calmamente as suas margens tranquilas. Visto daqui, da parte velha da cidade, com o casario de permeio, as chaminés e os terraços, nada parece mudado. O centro histórico foi preservado. Apenas ao longe do outro lado do rio, na margem esquerda, três torres gigantescas evocam o presente e que muitos anos se passaram desde a última vez que tinha olhado aquela paisagem e o rio - o seu Mississippi. O zumbido do telefone móvel sobressalta-o: - Ok. estarei na rua dentro de 15 minutos, o plano segue conforme o combinado!

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Cotidiano

Acendeu um cigarro na Rua das Flores, chegou até a escadaria do metrô e parou até que o cigarro acabasse. Ele encostou aquela barba fina no seu rosto e deu-lhe um beijo. Quente. Ela desceu as escadarias com passos apressados, segurando uma pasta verde de plástico transparente brilhante. E tal qual uma tartaruga, levava uma mochila pesada nas costas.

Um duplo, por favor. Atravessou a roleta, o vão entre o trem e a plataforma e acomodou-se em uma cadeira lateral no canto do vagão. Dublinenses para distrair a viagem. Não viu muita diferença entre as paisagens correntes na janela e a descrita por Joyce acerca dos pobres da Irlanda no início do século XX. Dublin era quase o Rio de Janeiro em O Cortiço.

A sua tendência era a de grafar todas a palavras que não conhecia com um asterisco, a lápis. E pensava na destreza do tradutor em encontrar palavras em português análogas às originais em inglês. Lembrou da tradução de Ulisses de Houaiss. Que lástima!

Depois de seis estações, entediou-se com Joyce. Lembrou do rosto quente pela manhã e do ranger da cama de móbile. Pensou: "Até a estação de Vicente de Carvalho são 20 minutos." Com a pasta em seu colo, ela criava dezenas de formas, pressionando com dedos o reflexo da luz do vagão sobre o plástico macio da pasta.

Na estação de Irajá entrou um rapaz que usava brincos nas duas orelhas, vestia uma camisa de linho branca e calça de brim de mesma cor. Sentou-se na cadeira em frente à sua e retirou de uma bolsa preta um livro de Stephen King.

Ao seu lado, sentou-se uma moça pálida. Ela usava vestido e meia-calça azul royal. A moça tinha mãos delicadas e pequeninas, de unhas rentes à carne e usava um esmalte cor de pele, cuja invisibilidade contrastava com as matizes da sua roupa. Aquela moça era quase um espectro vestindo azul. Abriu um livrinho em francês com uma ilustração bem-humorada na qual um menino segurava um buquê de flores maior que seu corpo.

A moça do vestido azul royal, como ela, também grifava algumas palavras a lápis. Na cadeira à sua frente, estava sentada uma senhora negra, robusta, que lia atentamente um livrinho de capa cinza: o antigo testamento.
Na solidão daquele vagão onde circulavam os ecos de Joyce, Stephen King e Jesus Cristo, de vez em quando, ela se deparava com o reflexo iluminado das lentes do seu óculos de grau no vidro enegrecido do metrô.

Feliz, entrelaçava as imagens dos bêbados do centro de Dublin com o cheiro do seu quarto às cinco horas da manhã. Transpiravam o aroma da primeira fornalha de pão que subia pelos galhos da árvore abaixo da sua janela enquanto as quatro paredes que os cercavam ganhavam cor na medida em que o dia amanhecia. Os cheiros, gostos e sons misturavam-se e como uma reação alquímica ao abafamento do ambiente, ganharam contornos, condensando-se numa intersecção de sombras azuladas no final do dia.

Sentido/to Saens Peña. Subiu as escadarias, comprou dois maços de cigarro na banca de jornal, passou pela Rua das Flores. Em casa.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Texto da minha amiga anônima que é a melhor pessoa para conversar sobre literatura num botequim pé sujo que eu conheço

Porque ler os clássicos

Acho que estou lendo romances demais! O pior é que essa seqüência batida de crise existencial, niilismo e melancolia já não dá caldo há muito tempo. Nunca me convenceu. Todo dia quando pego o trem pra trabalhar penso: “se liga criatura, fica esperta, a vida é muito mais rápida que você!”. Ontem ouvi uma amiga enumerar “as boas razões para ler os clássicos”. Não consegui reconhecer motivo melhor que a fruição, o encantamento. Minha amiga tem muito mais profundidade que eu, enxerga detalhes sutis, tira conclusões brilhantes. Eu normalmente recuo diante do incômodo de carregar um livro de 500 páginas para ler no trem, por isso reservo os clássicos para minha aposentadoria.
A professorinha se apressa ao ouvir a chamada de embarque do trem das 17:34. “Plataforma 12 linha M”, alguém anuncia pelos alto-falantes. Ela corre com cautela, temendo que o solado liso da sapatilha a faça escorregar no ladrilho. Por pouco não é atropelada por uma multidão afoita. Entra no vagão destinado às mulheres, porque é o primeiro e porque é um pouco mais vazio que os mistos, daí a vaga possibilidade de conseguir viajar sentada. Expectativa frustrada. As outras são sempre mais ágeis que ela. O temperamento tímido e o peso dos livros limitam seus movimentos. Suspira com desânimo e procura ajeitar-se num canto distante da porta. Ali pode se segurar e proteger-se do fluxo de passageiras que vão entrar e sair nas próximas estações (mais entrar do que sair).
Conformada em ter que passar quase uma hora sacolejando e sentindo um cheiro ruim de borracha queimada que ninguém sabe dizer de onde vem, pega um dos livros da mochila e tenta mantê-lo erguido na frente do rosto usando apenas uma das mãos (a outra está ocupada em garantir o equilíbrio de seu corpo). Faz isso muito desajeitadamente. As páginas só podem ser viradas quando o trem para nas estações, ou, a muito custo, com a ajuda do polegar. Tudo bem, o que se lê não é digerido em pouco tempo mesmo, exige respiração longa, concentração, reflexão. A cabeça da professora dói um pouco. É difícil absorver-se com todo aquele ruído, e a luz é muito fraca.
Neste momento diz para si mesma, chamando-se pelo primeiro nome, que tem que tomar o exemplo dos que encaram a vida sem choramingar. Pensa que ela parece ser a única com ar de lamúria naquele vagão. Volta atrás: “essa droga de viajem esgota qualquer cristão, mais ainda os de pouca fé”. Quando enfim a leitura “pega no tranco”, o conteúdo do livro se choca violentamente com o que acontece a sua volta. “A vida simpática de intelectuais notívagos na Paris dos anos sessenta” ou “Aventuras sexuais chamadas de experiências existenciais por uma escritora-mulher-do-sexo-feminino” têm suas frases cortadas por pedaços de conversa sobre a preguiça de fazer o jantar pro marido que não gosta de comida requentada. “Trabalhei muito hoje, por mim esquentava o arroz e fritava um ovo”. “Eu estou ensinando o fulano a cozinhar, se não aprender, que jante na casa da mãe dele”.
Do outro lado do vagão, o alvoroço em torno de uma partida de sueca. Todas as tardes a turma do carteado se reúne no mesmo lugar. No terminal ferroviário, os homens entram no vagão misto. Quando o trem para na estação seguinte, onde não tem segurança controlando, passam pro carro feminino e iniciam o jogo com as mulheres que ficaram guardando seus lugares.
Depois de tantas viagens, os palavrões não impressionam mais a professora, mas esvaziam seu interesse pelos intelectuais franceses. Ela observa as pessoas, reconhece, em palavras e gestos, semelhanças com seus alunos do ensino noturno. Olha com distanciamento. Sente-se estranha a tudo aquilo. Pensa em escrever sobre isso. “Bobagem!”, reage, “também fiz supletivo e sempre tenho preguiça de cozinhar à noite”. Assusta-se com o que a universidade lhe fez. Se tivesse parado no colegial hoje seria balconista no comércio do centro da cidade e voltaria pra casa todos os dias lendo a “Revista dos Famosos”, segundo lugar no ranking de best seller do trem, depois do “Jornal Popular” e antes da “Bíblia Sagrada”.
Então lembra do dia em que saiu de casa mais cedo e conseguiu viajar sentada, de frente pra uma senhora que lia um romance muito respeitado na literatura nacional. Um livro consagrado que já merecera uma dúzia de edições de bolso impressas em papel-jornal (baratas e levíssimas!). Por coincidência estava relendo o mesmo livro. Teve vontade de puxar assunto com sua cúmplice, saber o que ela achava da história, mas não teve coragem de interromper a leitura alheia. Segurou seu exemplar na altura dos ombros na esperança que a outra passasse os olhos pelo título em um momento de distração. Também não funcionou. Neste instante desejou livrar-se da mania feia de xeretar o que as pessoas lêem no trem, evitar enfiar a cara com indiscrição nas letras dos outros. Às vezes quase cai se contorcendo para ver as capas: romances espíritas, manuais de boa conduta em entrevistas de emprego, folhetos evangélicos, um ensaio sociológico com o carimbo da biblioteca da universidade onde estuda, “com certeza um aluno bolsista como eu...”.
Acorda de seus pensamentos quando percebe que a próxima estação é a sua, “atenção ao vão entre o trem e a plataforma!”, alerta a voz dos alto-falantes. Só então guarda o livro, desce do carro, e volta a correr pra pegar o ônibus que vai deixá-la, atrasada, na porta da escola onde trabalha tentando convencer da importância de ler os clássicos.

terça-feira, 3 de julho de 2007

II - OOT

O sonho perseguiu-o durante muito tempo. Tanto tempo que já não se lembrava dele com um sonho, mas como um acontecimento real. O estranho é que não se inscrevia na sua memória como um acontecimento passado mas como um acontecimento futuro. Não tinha aquele sabor de frutos secos, que tem tudo aquilo que pertence ao passado, pelo contrário estava de tal maneira vivo, que se introduziu na sua vida como um espinho na carne. Era como se um novo personagem tivesse entrado em cena, à revelia, depois do pano cair. Um pósfacio como um vírus, um hacker conduzindo a história a novos destinos: o romance finalmente liberto da tirania do criador.

III

7.30 am Rádio Comercial de Notícias
chile, américa latina, pinoché, violência, mortos, trabalhadores, exército, confrontos, crianças, incêndio, casa, família, mortos, governo, guerra, revolução, poder, povo, assassinio, Allende, luta, mortos, mortos, mortos, mortos...

Uma forte dor de cabeça trouxe-o até à realidade, momentaneamente. A luz infiltra-se pela janela do quarto semi-aberta, dolorosa, tal como o ruido que chega lá de fora, vozes e automóveis ruidosos, misturam-se com o locutor da radio que continua a debitar notícias:

avião, 260, abatido, pessoas, sul-coreano, mortas, erro, assassinio, desculpas, soviéticos, espionagem, civis, guerra, fria, americanos, povo, ocidente, blocos, leste, capitalismo, 260 mortos, erro, civis, inocentes, mortos, mortos, mortos, mortos...

Às apalpadelas, conseguiu colocar em off o radio-despertador e voltou a refugiar-se debaixo dos cobertores, sem som, sem imagem, regressou sem sobressaltos ao sono apaziguador, na doce casa do ópio,pensou, já incorpóreo.

IV

Macio. Ouve o estalar entre as bechas do acetato, enquanto acende o cigarro. Da mesa se pode ver o letreiro vermelho já com a tinta desbotada: menu.
Levanta-se, caminha oito passos, vira à esquerda e entra numa saleta iluminada por uma lamparina vermelha situada no centro. Sua sombra rabisca vultos nas paredes descascadas. Eco.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

The girl with a kaleidoscope eyes

Ele está escrevendo um livro onde o personagem principal, um escritor, se apaixona pela personagem de um livro que achou jogado numa banca de sebo em Buenos Aires e que não vale dois pesos. Um homem que era o sonho de outro homem.
De vez em quando, me envia fragmentos do livro. Eu leio atenta e tento perceber seu engenho, buscando a origem das palavras, os intertextos e desmonto as peças uma a uma para entender que funções desempenham naquela construção.
Temos a mesma formação. Ambos comemos realismo fantástico com farinha. E uma coisa que aprendemos com a Argentina é que literatura é sobretudo arquitetura. Talvez se começássemos a caminhada por Guimarães Rosa ou Joyce, desistiríamos no meio do caminho, sem entender isso. Ou através da poesia, com a sua métrica, a palavra nada diria, porque não saberíamos nem que pergunta fazer.
Eis que nos chega o conto, abarrotado de lirísmo. E cada palavra é única e muitas. É metáfora. Eu nunca gostei de poesia, nunca gostei de física e muito menos relacionei uma coisa à outra.
Tropecei em "el viejo" e lancei sobre ele um olhar de historiador. Encontrei mais do que um conteúdo para ilustrar minha leitura e me confundi com a entropia dos seus contos.
No primeiro corte, retirei uma fina camada de pele e tentei ordenar de maneira linear o desenrolar das ações. Como causa e efeito, antes e depois, passado, presente e futuro. Começo, meio e fim. Assim, eu fui treinada.
Me perdi e recomecei.
Cravei o bisturi um pouco mais fundo, retirei uma segunda camada de pele, percebi que o curso da história, apesar de se tratar de um conto, não era linear, mas cheio de encontros e entrecruzamentos no tempo. Foi então que desviei minha atenção para a sua estrutura deixado de lado o seu conteúdo. As intersecções no tempo delineavam formas geométricas, como círculos concêntricos, cujo centro estava em todas as partes e a circunferência em nenhuma.
Seguindo o rastro das palavras, nunca consegui achar o fim ou o começo da trama, mesmo tomando consciência da configuração do espaço em que me perdi.
E os mesmos elementos retornam sem cessar, dispostos de maneira desordenada, reconfigurando o desenho do conto. Tal qual, os grãos de areia de uma amplheta.
Abri uma janela na internet, lhe escrevi que mirava um mosaico de cores através de uma lente fixada a um tubo de papelão. Como um bom leitor de Cortázar, ele me pediu um caleidoscópio de presente.

Tempo Rei




Agora sim: labirinto sobre ampulheta. E pra quem puder entender que isso, antes mesmo de ser uma viagem de LSD, é Kafka, Borges, Niesztche, Sherazade, Homero, Shakespeare, Cortázar, Proust, Walter Benjamin, Clarice.

E os nossos avós que nos contavam histórias de um mundo em que o tempo passava vagaroso. E nós que contaremos histórias sobre os nossos avós.